quarta-feira, dezembro 14, 2005

Chuva de Verão





Chuva de verão...
até os grous se queixam
de terem as pernas curtas.

Matsuo Bashô in “O gosto Solitário do Orvalho”





Durante a noite tinha sonhado com o som da chuva a cair...
Sabia que tinha, com prazer, aconchegado mais a si a roupa e sorrido, interiormente, com a felicidade de quem recebe a visita de um ente querido há muito esperado!
Quando acordou, dirigiu-se imediatamente à varanda, salpicada de vasos com sardinheiras e amores-perfeitos...
E se, de facto, tivesse chovido?!
A dúvida durou breves instantes porque, imediatamente, subiu até ela um forte cheiro a terra molhada!
Sentou-se, primeiro que tudo, no chão húmido da varanda de granito. Inspirou profundamente, ainda de olhos fechados, para deixar entrar, pelo sentido a ele mais sensível, o doce odor da terra!
Quando abriu os olhos, para ver o campo à sua frente, havia uma espécie de névoa, que a impedia de visualizar com clareza as árvores, os arbustos, as flores: as lágrimas toldavam-lhe a vista ao mesmo tempo que o perfume exalado pela terra acabada de receber água... lhe inebriava a alma...
- Choveu mesmo!!! – gritou, da varanda do sótão para o vasto espaço da quinta, onde mais ninguém poderia ouvi-la!
Rapidamente, enfiou umas calças de ganga, uma camisa de flanela e vasculhou, durante uns cinco minutos, que lhe pareceram cinco horas, por todos os cantos e recantos daquela água-furtada, os velhos botins da avó.
Desceu as escadas a correr, abriu a porta da rua, e foi, como se ao encontro da alegria absoluta, embrenhar-se no velho pomar, enterrar as pernas na terra húmida até para além dos botins... pegar num pedaço de lama e cheirá-lo, com vontade de o beijar, de o mandar abençoar, se fosse rapariga de ter essas crenças!
Tocou as folhas molhadas das árvores e sorriu. Pegou numa rosa e juntou, às gotas de água, uma lágrima sua!
Que felicidade suprema, aquele inesperado aguaceiro nocturno!
Foi, com passo lento, e saboreando cada cheiro, cada som de ave aturdida pela chuva, que se dirigiu ao tanque da quinta, onde descalçou os botins e os lavou.
Depois, voltou para a velha casa de família, contente como se tivesse experimentado um momento único, porventura dos melhores da sua ainda jovem vida, e decidiu:
- Vou tomar um bom banho, acender o lume e preparar o pequeno-almoço para os outros...
Vão estranhar tanta azáfama da minha parte numa manhã de férias... mas o meu olhar e sorriso fá-los-ão pressentir que tive um encontro secreto com a minha Divindade...
Não perguntarão nada, porque respeitam a intimidade e entendem a importância da discrição.
Mas eu saberei que foi verdade, e a Natureza também...!



1 comentário:

Vasco Pontes disse...

Olá Maria,
Vou então, dizer-te: Escreves bem, tens o sentido do ritmo, dominas a técnica, sentes o que dizes. Talvez possas evoluir ainda em direcção à "tua" escrita, mas és uma contadora de histórias (mais do que eu, que sou um contador de momentos)e acho que há ainda muitas histórias esperando por ti.Histórias que poderás escolher ou não contar, mas que aguardam apenas a tua atenção. Para as identificar, terás que olhar. Não só de dentro para dentro, que é por onde tudo começa, mas de fora para dentro e de dentro para fora.
Parece-me que já estás nesse caminho. Faltar-te-á percorrer algumas etapas mas este texto, esta história, parece-me apontar para que os passos mais difícies estão dados.
Beijos