sexta-feira, dezembro 16, 2005

Salão


Durava há muito tempo aquele jogo. Tratava-se, de facto, de um jogo de sedução, que ambos conheciam e do qual dominavam as regras.

Ele dizia: ”Fala comigo. Diz-me tudo o que quiseres. Murmura-me aquelas coisas secretas. Faz de mim um confessor, como se eu fosse um padre, um psicanalista, um amigo”.

Ela dizia: “Falar contigo é bom, mas torna-me insaciável. Quero sempre falar mais. Quero falar contigo, sem barreiras, sem restrições”.

Às vezes telefonavam-se, só para dizer que queriam dizer, e ficavam assim, doídos com desejo. Desejo de falar, só.

Um dia ela disse: “É completamente louca esta metalinguagem que usamos. Porque não falamos, em vez de, interminavelmente, falarmos de falar?”

Ele perguntou: “De que precisamos?”

“De um salão”, respondeu ela. “Um salão vazio, completamente vazio, onde possamos tirar as roupas, arranjar um canto seguro e confortável e deixar que as palavras, finalmente, se soltem”.

Passou algum tempo. Um dia ele disse-lhe: ”Temos o salão”.

Foram. Falaram. Um pouco.

Tiraram as roupas. Falaram um pouco mais.

Depois deixaram de falar. Começaram a descobrir os corpos, sem roupa. A textura da pele, os beijos molhados e o cheiro dos corpos substituíram as palavras.

Encontraram-se outras vezes, no salão. De cada vez o apelo dos corpos ocupava mais o espaço das palavras, e dos silêncios, até parecer que só isso existia: o prazer físico, a busca do êxtase orgástico como objectivo último do encontro.

De vez em quando encontravam-se noutros locais. Quase sempre em circunstâncias propiciadas externamente. Nesses momentos, o encontro era penoso, amargurado. Ela ficava com os olhos rasos de água, a olhá-lo e, quando conseguia, balbuciava monossílabos sem nexo.

Ele olhava-a intensamente. Sorria. Por vezes beijava-a, levemente, e ela achava os lábios dele frios. Como seriam os de um cadáver.

Numa tarde de chuva ela telefonou. Disse-lhe: “Perdemo-nos.”

Ele protestou. Ela insistiu: ”Perdemo-nos quando deixámos que o encontro dos corpos fosse o mais importante. Foi um terrível equívoco. Fizemos tudo errado e agora tenho saudades de ti, mas é tarde. Já não sei quem tu eras, antes dos corpos.”

Ele sugeriu que se encontrassem para falar do assunto. No salão. Ela recusou. Disse: “No salão nunca mais. Terá que ser num sítio público, com gente à volta”.

No dia combinado, ela chegou ao restaurante mais cedo.

Sentou-se, olhando o Jardim de Inverno através da janela e sentindo uma pesada nostalgia. Podia chorar. Sofria pela perda de um amor nunca verbalizado. Parecia-lhe inaceitável que tivesse sido a ausência da palavra, afinal o princípio de tudo, que tivesse comprometido, amputado, talvez destruído para sempre a beleza do sentimento que os ligara.

Entregue a estes pensamentos, sentiu uma presença a seu lado. A mão que, timidamente, lhe aflorava os cabelos e a voz doce e suave que sussurrava “Olá, Princesa” devolveram-lhe instantaneamente a presença de espírito. “Que bom ver-te”, disse, exibindo um sorriso determinado. “Hoje vamos falar”.

2 comentários:

Triologia do Zum zUm zuM disse...

Simplesmente Liiiiiiiiiiindo!!!!! Estou sem palavras!

Beijos

Segundo zUm

APC disse...

ABSOLUTO!
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(e comovente)