quinta-feira, fevereiro 16, 2006

A Natureza a imitar a Arte

Constable (Salisbury Cathedral, from the Meadows)

Cruzaram-se, pelo terceiro dia consecutivo, no mesmo local e à mesma hora. Desta vez, ele esboçou um sorriso e passou tão perto que a sua mão roçou a dela, ao de leve. Laura não retribuiu o sorriso e apressou o passo, sem sequer olhar para trás. O seu pensamento seguiu, no entanto, com aquele desconhecido e os estranhos acontecimentos dos últimos dias.
Tinha sido na quarta-feira, por volta das oito e meia da manhã. Laura lembrava-se de ter olhado para o relógio um pouco antes de se ter cruzado com aquele homem pela primeira vez, em frente à Estação do Rossio. Momento inesquecível, de tão insólito: ao avistá-lo, ainda a uns metros de distância, tinha-o confundido com outra pessoa. Mais próximo, olhara-o bem de frente, para se certificar. Foi nessa altura que os seus olhos encontraram o olhar fixo do desconhecido. Por um instante, perpassaram pela sua mente miríades de imagens, sentimentos, emoções: a certeza de um conhecimento profundo e antigo.

Foi com um sentimento de curiosidade que lhe pareceu despropositado, e que a todo o custo procurou evitar, que Laura passou o fim-de-semana. Na verdade, tinha que admitir, nunca dois dias lhe tinham parecido tão longos.

Finalmente chegou segunda-feira mas, o esperado encontro em frente à estação do Rossio, não se deu. Eram oito e trinta. Laura olhava os ponteiros do relógio e pensou "talvez hoje se tenha atrasado um pouco, vou voltar atrás e refazer o caminho, com calma". Assim fez. Às oito e quarenta voltou a passar no local e... nada do desconhecido. "Paciência", suspirou, "não vou chegar atrasada por uma tolice destas", e seguiu o seu caminho.

O resto da semana decorreu como todas as semanas antes do encontro. A pouco e pouco, Laura conformou-se com a possibilidade de nunca mais se cruzarem. Tentou deixar de pensar no assunto. Chegou a acreditar que tudo não tinha passado de um inusitado fruto da sua imaginação.

Era sexta-feira à tarde, de um dia luminoso, que convidava a um passeio e um pouco de sol antes do regresso a casa. Laura decidiu-se por um pequeno desvio pelo café do parque. Pegou no seu livro e na mala e subiu, lentamente, por entre as árvores, até alcançar a esplanada.

Quedou-se, sem saber o que fazer, ao avistar, numa das mesas, absorto na leitura de um livro, o desconhecido. Voltar atrás parecia-lhe o mais avisado. Afinal, ele nem sequer a tinha visto. Seria como se nunca tivesse acontecido. E ela, perdoar-se-ia por isso? por não ter, sequer, tentado o confronto com o fantasma?

Não foi possível prolongar o dilema porque, quase em acto contínuo ao seu pensamento de fuga, o jovem levantou os olhos do livro e dirigiu o olhar, determinado, para ela. Sorriu-lhe e acenou-lhe, como se a esperasse.

Com o coração acelerado e as pernas trémulas, Laura aproximou-se, puxou a cadeira, pousou o livro na mesa e sentou-se. Ele voltou a sorrir e disse "Olá Laura. Sou o Pedro". De seguida, pousou também o seu livro na mesa.

Laura pensou "estou a enlouquecer, isto não pode ser verdade, como é que ele sabe o meu nome e, por que raio de coincidência é que está a ler o mesmo livro que eu?", acabou por conseguir balbuciar "isto não pode estar a acontecer... também estás a ler "stories", de Oscar Wilde?!"
Pedro respondeu, sempre sorrindo, "na realidade, é também um dos meus autores preferidos, como muitas das coisas que temos em comum"...
" Que disparate!", protestou Laura."Não acredito que nunca te tenha acontecido contemplar uma paisagem que te parece fantástica, presenciar um pôr-do-sol que classificas de "como do outro mundo", ou ficar extasiada perante a perfeição de um arco-íris e pensar: " isto parece uma pintura, aquele louco decadente até era capaz de ter alguma razão... quem sabe se, por vezes, é mesmo a natureza que tenta imitar a arte?".Laura, riu, nervosamente, e disse "não, não vou negar que esse pensamento já me tenha ocorrido, mas afasto-o, imediatamente, como se se tratasse de uma patetice em que, romanticamente, gosto de acreditar."

Pedro levantou-se e aproximou-se de Laura. Afagou-lhe os cabelos, beijou-lhe, suavemente, a testa. Ela ergueu-se e deixou-se abraçar, entregando-se à ternura do seu corpo quente, do cheiro familiar que dele emanava, da doçura da voz que lhe sussurrou ao ouvido "Este romance já foi escrito. Cumpre-nos vivê-lo".

Desceram o parque abraçados e, quem os escutasse, não teria surpreendido mais do que a animada conversa de um casal apaixonado, que acertava os últimos detalhes do fim-de-semana planeado para o Gerês. Ficaria igualmente a saber que os jovens não estavam dispostos a perder tempo. Era só dar um pulinho a casa para agarrar no saco e sairíam de Lisboa ainda antes de a noite caír.

13 comentários:

Vasco Pontes disse...

Olá Maria,
Li com muito prazer, no fio da impossibilidade racional e da vontade de acreditar numa história sedutora.
Beijos

Hata_ mãe - até que a minha morte nos separe Hugo ! disse...

Maria
Bom dia. Ja cá estou de novo e estive ontem, tenho andado a ler tudo aos poucos.
Um grande abraço

Anónimo disse...

Excelente texto. escreves divinalmente.
Beijos Maria

L. Rodrigues disse...

Dir-se-ia que um amor pefeito tem que ser inventado. A ficção de alguém. Fiquei um pouco triste ao ler a história.
Seria assim, se Deus escrevesse histórias de amor com a mesma determinação com que mandou o filho para a cruz?

Maria Carvalhosa disse...

Caro L.,
não acredito na pré-determinação divina e não pretendo converter ninguém a algo que nem sequer professo.Quis, apenas, trazer para a discussão as sempiternas polémicas teses de Oscar Wilde sobre a dialéctica arte/natureza. (Ao mesmo tempo que me deliciei ao imaginar este amor-perfeito!... admito!)
Bjs.

Maria Carvalhosa disse...

Obrigada, SM e Zézinho. Sinto-me lisongeada. Não mereço tanto!
Beijos.

Maria Carvalhosa disse...

Olá Noite Estrelada,
fico muito contente por saber que continuas do meu lado, sobretudo depois de, involuntariamente, eu te poder ter magoado... aceita as minhas desculpas, se foi isso que sucedeu.
Um abraço bem grande e até breve.

Maria Carvalhosa disse...

Querido Vasco,
entendo que leias textos como este com algum distanciamento. Não faz o teu género nem estilo mas, como dizia o poeta, "a ponte que nos une..."
Beijo sentido.

Viajante disse...

Sorrio, claro, ao percorrer as linhas. A história é muito intimista (risos). Quase decadente. Faz-me lembrar qualquer coisa 8ainda mais com Wilde).

Ah, e que interessante poderia ser encontrar o visceral e profundo. Enfim, arquétipos.

Não pareces nada bipolar, nem esquizo. Terás de esforçar-te muito mais, se quiseres mesmo parecer (risos)

beijos

Maria Carvalhosa disse...

viajante: a cumplicidade é muito bonita. ;)
Beijos.

Hata_ mãe - até que a minha morte nos separe Hugo ! disse...

Maria,
Tá tudo bem amiga e agora minha estrelinha...
Um abraço

João Villalobos disse...

Hmmmm. Muito interessante até ao final. Como se um par tão intuitivo, síncrono e excepcional se transformasse de súbito em mais «um casal apaixonado» entre tantos.
Quando Algo mais alto nos junta (por exemplo uma Autora ;), não voltamos tão depressa à "realidade" :)

Paulo Cunha Porto disse...

A tão bela prosa calharia bem o título «Pedro Ex-Machina». mas concordo que a sonoridade prejudicaria o lado esperançoso do final. Porque se trata de uma bela ficção, já que na realidade poderia ser, bem pelo contrário, o factor de esperança por excelência. Mas na vida não há disso.
Beijinhos.