quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Insónia


Na pequena aldeia, o relógio da torre da igreja tinha acabado de fazer soar a 6ª badalada. Luísa pensou "ainda seis da manhã... há noites que demoram eternidades a passar!". Virou-se para o outro lado da cama, aconchegou a almofada por forma a nela melhor enterrar a cabeça e voltou a tentar dormir. Mais uma badalada "seis e meia, estou farta!". Acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira e ficou a olhar para o tecto, de madeira pintada, onde algumas falhas de tinta faziam surgir estranhas formas: uma cabeça de lobo (ou de cão?)... a silhueta de uma jovem mulher... um chapéu de abas largas... uma flor, sem caule, à qual faltavam algumas pétalas... "e pronto! mais uma noite sem dormir! Durante quanto tempo aguentarei este inferno?"

Sentou-se na cama. Já que não dormia era melhor que se fosse preparando para mais um dia de trabalho. A rotina habitual: o duche e a escovadela de dentes, a roupa que tirava maquinalmente do roupeiro e enfiava no corpo, uma penteadela nos cabelos soltos, que terminariam presos numa fita, em rabo-de-cavalo,
o pequeno-almoço a sós, a comida que, invariavelmente, deixava aos seus únicos companheiros de habitação: o casal de gatos. Um último relance ao espelho, por mero hábito, dado que, ainda que os sapatos ou as meias fossem de pares diferentes, não daria por isso.
Abriu o portão da velha casa de campo que tinha herdado da avó (que sorte a dela! até tinha casa própria a apenas 20Kms da escola onde tinha ido parar) e reparou que o sol começava a despontar, por cima dos choupos que ladeavam o ribeiro. "Vai estar um dia bonito." Tirou o carro da garagem e fez-se à estrada, em direcção à vila. Ainda faltava muito para a primeira aula. Iria ter tempo para saborear uma chávena de café antes de entrar na escola e, quem sabe, encontrar alguém com quem trocar duas palavras: as primeiras do dia. Depois de entrar na sala de aula, a sua voz não teria mais descanso. E como se sentia cansada! Farta daquela vida de solidão, longe da família, dos amigos... desterrada: era esse o termo. "E pensar que sempre acreditei que a vocação era o mais importante!... já nem ensinar me dá prazer... tenho que pagar um preço demasiado alto para fazer o que gosto (ou gostava, agora sinto que começo a detestar) e para poder contribuir para o sustento dos meus filhos. Pois é, o dinheiro também faz falta... mas o que me dói a ausência das noites de amor com o Gabriel, agora reduzidas ao escasso e frenético fim-de-semana! que saudades de ler uma história à Alice antes de adormecer... os seus bracinhos à volta do meu pescoço, o beijo de boa noite e o até amanhã, mãe... e o Vasco, tão pequenino! Um dia destes vai dar os seus primeiros passinhos e eu nem vou estar por perto para assistir. "

Sozinha ao volante, percorrendo a sinuosa estrada que já conhecia de cor, sorriu com amarga ironia e proferiu em voz alta "e ainda devo dar Graças e sentir-me abençoada pela Fortuna. Afinal, muitos dos meus colegas nem sequer uma colocação a 300 Kms de casa conseguem!!!"

Mais uma curva apertada, incompreensivelmente inesperada. Luísa despertou com o abusivo e roufenho som de buzina do camião que, surgindo do nada, parecia ocupar toda a estrada à sua frente.

18 comentários:

Hata_ mãe - até que a minha morte nos separe Hugo ! disse...

Maria querida,
Para mim tem sido mesmo uma longa noite de insonia.
Uma data tristemente marcada de lembranças angustiantes.
Mas tive saudades e vim dar-lhe dois beijinhos.

Vasco Pontes disse...

Olá, querida Maria;
Contar histórias, sim. Sair de si próprio, procurar(inventar, compreender?) outras vidas, outras preocupações.
Sentes como ficas tão responsável pelas tuas personagens. Sentes como elas não dizem sempre o que pensavas que diriam.
Estarei enganado ou esta história representa um momento especial no teu percurso?
Beijos

Anónimo disse...

Nessa fracção de segundo, Luísa virou bruscamente o volante para a berma direita e o carro abanou literalmente com a deslocação de ar daquela massa de ferro circulante à sua esquerda. Por breves instantes, projectou-se, à sua frente, um coração de luz brilhante, e, atrás de si, ouviu o riso incontido das suas crianças felizes. Nessa fracção de segundo ...

João Villalobos disse...

Bravo, Maria! E um muito bom final aberto. Afinal, o camião só «parecia» ocupar a estrada. Aposto que afinal ainda sobrava espacinho para ela passar...;)

Maria Carvalhosa disse...

Querida Noite Estrelada,
Também pensei em ti, ao escrever este "Insónia". Como não me lembrar da minha amiga que nunca dorme? Mas dirigi a história num sentido bem distinto. Não vou escrever sobre a tua dor. Já basta (e sobra) a que tu vives!
Um beijo com muito carinho.

Maria Carvalhosa disse...

Querido Vasco,
tu lês-me. Mesmo.
Beijo cúmplice.

Maria Carvalhosa disse...

meu caro anónimo,
é por isso que esta pequena história termina de uma forma aberta... para que qualquer pessoa, como o meu amigo fez, lhe dê o desfecho que acredita melhor se lhe adequar... :)

Maria Carvalhosa disse...

Olá João,
obrigada pelo entusiástico "bravo". Fico feliz por teres gostado da narrativa. Não só como escritor, mas também como crítico, tenho-te em elevado conceito. A ironia final do comentário é o teu "toque"... tão especial! ;)
Bjs.

Maria Carvalhosa disse...

Querida Luz,
conforme referi em resposta a outro comentário acima: é para isso mesmo que existe a narrativa com o final em aberto - cada um pode terminá-la a seu bel-prazer. ;) ... e não peças desculpa... este espaço também é teu|
Bjs.

João Villalobos disse...

Olá Maria,
Vou com a Sofia passar estes dias ao baleal. Chegamos sábado depois do almoço. Se quiseres tomar chá connosco apita. Vou estar sem net mas o meu tel. é o 918695984. Bjs

L. Rodrigues disse...

Camiões que abalroam carros com professores é um tema que me é demasiado próximo. Sem final aberto, nem feliz.
Mas sim, tudo o que somos e pensamos que somos e os olhos com que o olhamos tem um prazo de validade incerto. Pode terminar daqui a cinco segundos, ou nunca.

Maria Carvalhosa disse...

olá João,
Obrigada pelo convite para o chá no Baleal mas, este fim-de-semana, vou para Aveiro...
tenho pena, mas terá que ficar para outra oportunidade (que não deverá ser difícil de encontrar).
Beijinhos e bom fim-de-semana para ambos.

Maria Carvalhosa disse...

Caro L,.
Lamento que esta minha história te tenha trazido dolorosas memórias. Isto está sempre a acontecer... imagina que, precisamente o último escrito do Paulo Cunha Porto de ontem à noite, intitulado "Fins" também me trouxe recordações bem amargas. Não resisti a dizer-lho e ele ainda me pediu desculpas pela coincidência... que fazer? a ficção e a realidade encontram-se demasiadas vezes, no permanente jogo de saber quem imita quem ;) - esta última é só uma alusão ao outro texto baseado na tese de Oscar Wilde, numa tentativa (malograda?)de te fazer sorrir.
Beijinhos, L., e bom fim-de-semana.

L. Rodrigues disse...

Quando não existe culpa não são precisas desculpas. :)

Anónimo disse...

Um pesadelo?
Se sim, foi péssimo.
Beijinhos

Anónimo disse...

Ainda a gozar as delicias do carnaval?
Beijinhos

João Villalobos disse...

Então, então? As férias já acabaram! ;)

Isabel José António disse...

Querida Maria, temos andado um pouco "arredados" por excesso de trabalho e daí que já há algum tempo não passava no blog. Mas que texto impressionante! O final tira a respiração! Desejaria, como alguns dos outros "comentaristas", que Luísa tivesse passado através da nesga de espaço que a imaginação sempre fabrica para os personagens que já a conquistaram! E isso é realmente o que se deve dizer: em tão poucas linhas, a sua personagem já cativa!

Parabéns e obrigada pela sua visita ao nosso cantinho, é sempre muito bem aparecida!

Isabel