sexta-feira, fevereiro 17, 2006

O Aleph


"O God, I could be bounded in a nutshell
and count myself a King of infinite space."

HAMLET, II, 2


[...] "Fechei os olhos, abri-os. Então vi o Aleph. [...]
[...] vi uma pequena esfera furta-cores, de brilho quase intolerável. Primeiro, supus que fosse giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espectáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um quebrado labirinto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos prescrutando em mim como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me reflectiu, vi num pátio da Rua Solero os mesmos ladrilhos que, há trinta anos, vi no saguão de uma casa de Frey Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, listas de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um dos seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um cancro no peito, vi um círculo de terra seca numa vereda onde antes exisitira uma árvore, vi numa quinta de Adrogué um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o facto de as letras de um livro fechado não se misturarem e se perderem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia reflectir a cor de uma rosa em Bengala, vi o meu quarto sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do Mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando bilhetes postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de alguns fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisontes, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta de escrivaninha (e a letra fez-me tremer) cartas obscenas, claras, incríveis, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento na Chacarita, vi a relíquia cruel do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi o meu rosto e as minhas vísceras, vi o teu rosto e senti vertigem e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto secreto e conjectural cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.
Senti infinita veneração, infinita lástima." [...]


Jorge Luís Borges

3 comentários:

Anónimo disse...

Excelente esta escolha. Por vezes questiono-me se quem não leu JLB saberá o que é a verdadeira literatura.
Beijo

L. Rodrigues disse...

De todos os autores que morreram antes de JLB nascer haverá alguns que sabem.
Peço desculpa, é apenas a minha veia anti-absolutista.

Anónimo disse...

Philemon Holland y Filomeno, a mi pesar....