quarta-feira, janeiro 03, 2007

Musicalla Lilies


( Musicalla Lilies - óleo sobre tela de Júlia Calçada )*

Vestia de cetim e usava pérolas.

Gostava de tons pastel.

Ninguém, como ela, entendia a inexcedível ligação entre as flores e a música.
Vivia a maior parte do tempo no palacete da Serra de Sintra: herança de família em avançado estado de degradação, agora completamente restaurado.

De manhã, costumava passear pelo jardim e deixar-se inebriar pelo perfume das muitas flores que o adornavam. Por vezes, voltava para casa com uma braçada de rosas, de lírios, de jarros, de malmequeres. Frequentemente do seu corpo emanava, ao fim da manhã, um subtil aroma a magnólias e rosmaninho e o seu jovem rosto esboçava sorrisos a um tempo ternos e nostálgicos.

À tarde, sentava-se no salão térreo, cujas altas janelas-portadas davam para o imenso parque de altivas e centenárias árvores. Agarrava, então, no violino, e a melodia soltava-se. Do seu espaço privado, baixinho, de início, e depois, em crescendo, os gemidos e choro das cordas acariciadas pelo arco propagavam-se além-jardim, pela encosta da serra, até terem alcançado os ouvidos atentos de alguém que, numa moradia vizinha, mantinha as janelas igualmente abertas de par em par.

A velha cozinheira da avó, a sua ama desde sempre e o fiel jardineiro faziam com que a vida lhe corresse suave, sem sobressaltos: estava sempre tudo a seu contento, como se vivesse completamente só e um exército de anjos invisíveis se ocupasse do seu bem-estar, no Paraíso.
De longe a longe, ausentava-se por uma temporada: refugiava-se na aconchegante água-furtada em Montmartre, onde ainda se encontravam, como que guardiãs do tempo e do espaço de felicidade passada, muitas das telas pintadas pelo falecido marido.

De outras vezes, permanecia por algum tempo na sumptuosa mansão de Kensington High Street, quando lhe chegava um desejo irreprimível de alimentar o espírito e reavivar memórias de teatro, música e exposições.

Mais raramente, viajava até aos States, onde a aguardava, impecavelmente limpo e depurado de vida, o seu apartamento no Upper West Side. Apenas nesse ambiente nova-iorquino se permitia deixar-se deambular e misturar-se, perder-se, no grande carrossel cosmopolita da arte, da cultura e da miséria humana.

Quando voltava ao palacete de Sintra, depois de uma dessas viagens, mantinha-se fechada, durante largos períodos, na sua sala de leitura. Era nessa altura que relia, de forma obsessiva e sem um critério aparente, obras de autores tão díspares quanto Shakespeare, Jean-Jacques Rousseau, Jane Austen, Virginia Woolf, Anais Nin, George Sand, Marguerite Duras, Albert Camus, Jorge Luis Borges, Sándon Marái, José Saramago... lia até à exaustão... até ao dia em que voltava a dar o seu passeio pelo jardim, logo pela manhã e se sentava no salão, à tarde, a tocar violino.

Dizia-se que dos seus belos olhos cinzentos nunca havia brotado uma lágrima, embora espelhassem a melancolia de todos os desgostos do mundo.
Vestia de cetim e usava pérolas.
Gostava de tons pastel.


*para conhecer um pouco da obra da pintora visitar jc

16 comentários:

Maria disse...

Quanto olhos espelham melancolia sem deles nunca ter brotado uma lágrima?

Fiquei curiosa com este teu texto.
Vou tentar saber mais sobre Julia Calçada.

Um beijo

amigona avó e a neta princesa disse...

Passei por aqui por acaso e gosteimuito de ler... voltarei...Bom ano...

Ana Prado disse...

OLá minha amiga,
peço desculpa pela ausência... a verdade é que voltamos sempre aos sítios que nos fazem bem,´foi por isso que regressei. E ainda bem que o fiz, despertaste-me a curiosidade.

Um grande abraço. Em tons de pastel:)

Anónimo disse...

Quanto eu gostaria que uma vivência tão diversificada tivesse por detrás uns olhos de onde houvesse, algum dia, brotado, nem que fosse uma lágrima. A água, qualquer que seja, ajuda a purificar...
Mesmo o espirito.

Isabel José António disse...

Olá Maria, querida amiga,

Muito bonito e cheio de bom gosto este seu post.

Quando nos sentimos unos com a Natureza, quer tenhamos disso consciência ou não, deixamos que a Paz e Silêncio nos invadam e nos transportem para a verdadeira essência das coisas que São. São... simplesmente.

Nessa outra dimensão estamos mais propensos a ouvir-mo-nos a nós mesmos.


Um grande abraço

José António

Maria Carvalhosa disse...

Maria,

As tuas visitas são sempre um mimo para mim.

Beijo.

Maria Carvalhosa disse...

Olá amigona,

Obrigada pela tua visita. Vou retribuí-la e lá, no teu espaço, dar-te-ei conta das minhas impressões.

Volta sempre.
Um beijo.

Maria Carvalhosa disse...

Amiga Ana Prado,

Não tens, nunca, que pedir-me desculpa seja do que for. Ter-te encontrado e fazer parte do teu núcleo de visitados já é, para mim, uma honra e um grande prazer.

Prazer maior é visitar-te e ir descobrindo a poeta/fotógrafa Ana Prado... com todas as dúvidas, ansiedades e receios que caracterizam a Artista que és.

Beijo sentido.

Maria Carvalhosa disse...

Querida Ana Tavares,

Julgo entender o que dizes sentir perante a ausência de lágrimas. Neste caso, nada a fazer... a rapariga que vestia de cetim, usava pérolas e gostava de tons pastel nunca teve a oportunidade de, segundo o teu ponto de vista, se purificar pela água, devido à sua incapacidade de chorar.

Talvez tenha encontrado outra forma de purificação...

Beijos.

Maria Carvalhosa disse...

António Rosa,

Obrigada por mais esta visita embora o objectivo não tenha sido comentar o que faço... és sempre bem vindo, tu sabes!

Beijo.

Maria Carvalhosa disse...

Olá José António,

Que bom ter-te de novo por aqui e, acima de tudo, no Poesia Viva.

Encontrar amigos que julgamos perdidos é sempre razão para alegria.

Beijos.

caminante disse...

Te felicito por el texto. Te felicito, aún 0ás, por las fotografías.
Un fortísimo abrazo.

Maria Carvalhosa disse...

Obrigada, Caminante.

Que o teu caminho te traga mais vezes aqui. Serás sempre bem vindo.

Um beijo.

Manuel Nunes disse...

Maria,

Para além dos dados biográficos da artista e da janela que nos abres para os seus trabalhos, o teu texto toca-me por esse olhar quase mítico sobre Sintra, sobre os seus palacetes e os feitiços da Serra. Sinto muito bem aquilo que escreves, porque também eu andei por lá, sob o dossel das árvores, ali permanecendo algumas temporadas, quando infante, durante aqueles tempos de férias de Verão que pareciam não ter fim. "À la recherche du temps perdu"... Até parece.

Um grande abraço.

MySelf disse...

Amiga Maria,

O teu post despertou a minha curiosidade... é que não conheço nada da obra dela. Vou investigar

Um beijinho

Anónimo disse...

Maria,

Um texto lindo inspirado numa pintura lindíssima. Essa senhora está a pintar cada vez melhor. E tu continuas a escrever como se espera de ti.

Abraço.