quarta-feira, fevereiro 21, 2007

A Obra (Ponte do Arco)



A casa. A casa térrea, extensa, com inúmeras janelas e portas. A casa, pintada de branco, com a tradicional risca azul que se estende aos muros envolventes, marca de um passado de aristocracia rural, orgulhosamente decadente. A buganvília, linda de se ver, em qualquer estação do ano, logo à entrada do pequeno portão.
O sótão, enorme e misterioso, repleto de arcas, caixas e instrumentos de cultivo antigos, autênticas peças de museu. A entrada para a antiga garrafeira, na cave, com outra entrada interior através de um alçapão na sala-de-jantar. A casa-do-forno, onde muito pão e bolos foram cozidos, ao longo de gerações. O jardim, criteriosamente tratado, com as suas áreas delimitadas: rosas, de todas as espécies e cores, aqui, malmequeres, brancos, e amarelos, do outro lado, goivos e petúnias num canteiro central, amores-perfeitos um pouco por todo o lado, bem ao gosto da minha mãe, e as imprescindíveis sardinheiras a sublinhar o pátio, a que chamamos "passeio", mas que mais não é que um espaço de calçada, com cerca de 3 metros de largura, a todo o comprimento da casa, entre a frente da mesma e o jardim. O pomar, diversificado por espécies e esteticamente definido, em termos da cor e do perfume das flores na primavera, e dos frutos, no verão. A adega, onde ainda se pisavam as uvas no lagar quando eu era miúda e me deixava inebriar pelo forte aroma do mosto. O poço sem fundo. Nascente inesgotável: quanto mais água se tirava mais aparecia, horas depois, nunca tendo sido possível, nem com a ajuda dos bombeiros, esvaziá-lo completamente, para limpeza. O tanque que, à falta de melhor, serviu muitas e muitas vezes de piscina. O rio a separar a quinta em duas. A vinha do lado de lá, com cinco escassos metros de ponte de madeira a separá-la do lado de cá. No topo da vinha, que ficava na colina, o muro que a separa da estrada romana que, sendo um dos caminhos que certamente nos levaria a Roma, tomávamos para dar um passseio até ao antigo Convento, com a sua Igreja e Cemitério.
O calor dentro da casa, no Inverno.
A casa fresca e arejada no Verão.
O perfume das flores, das ervas, da fruta nas árvores.
A cor do campo, da terra, do céu. O som da água a correr, no riacho. Os choupos, altos e esguios, a acompanhar o curso do ribeiro.

Aquela casa já tinha, de fonte segura, para mais de um século quando eu nasci.


Apesar de a designação oficial da propriedade ser "Quinta da Ponte do Arco", a fazer jus ao belo arco romano sobre o qual a estrada fora construída, sempre lhe chamaram "A Obra".
Conta-se na família que, à data da construção das primeiras linhas de caminho de ferro estava previsto que o comboio passasse exactamente a meio do que viria a ser o jardim. A casa, essa teria sido inicialmente concebida para armazém dos produtos colhidos da terra que seriam transportados para consumo noutros destinos.

Imagina-se que a obra, por qualquer razão que desconheço, tenha estado embargada durante tempo suficiente para que o local viesse a merecer essa designação alternativa. Há mesmo quem, ainda hoje, lhe chame "Quinta da Obra". A realidade é que a linha foi desviada para uns 15 Kms a Oeste e o comboio nunca se fez ouvir naquelas paragens.

O meu trisavô materno, proprietário do local, decidiu então dar-lhe outro fim. Já que tinha a filha primogénita casadoira e o vale era aprazível, transformou o projecto de armazém numa casa de habitação e ofereceu-a aos jovens nubentes.

Na casa nasceram, viveram e morreram pessoas que deixaram um grande vazio em mim, quando partiram. Desde a minha bisavó, Mafalda, (há muitos anos viúva do bisavô Luís Filipe), ao meu avô Francisco e, por opção sua, também o meu jovem marido escolheu, há quase doze anos, aquela casa para viver os seus últimos dias. Era um sítio alegre, dizia ele, e à sombra da ameixeira, na companhia das sardinheiras, multicoloridas, o seu sofrimento era minorado, permitindo-lhe assim fruir, com algum prazer, o tempo que se lhe ia esgotando para estar com os seus.

Memórias.


Muitas memórias felizes da infância, (como a de tantas infâncias, infelizmente não de todas) das brincadeiras e risadas que os meus irmãos e eu soltávamos, a andar de triciclo, a jogar à bola ou a fazer piqueniques (irónico, não é? vivíamos no campo e íamos fazer piqueniques para o pinhal ou mesmo para o meio do pomar, como se tivéssemos acabado de chegar da cidade e sentíssemos uma necessidade premente de um contacto directo e estreito com a natureza - naquele espaço tão nosso, tão de dentro de nós, tão pleno de nós em todos os seus recantos).



Memórias dos meus pais, ainda enquanto casal, a viver uma vida aparentente feliz com a sua prole. Talvez o tenham sido... naquele tempo! Certo é que, se o não eram, nem por isso deixavam transbordar uma gota de azedume à nossa frente e, olhando agora para trás, seria, de todo, impensável que existisse alguma transferência de desamor para as três crianças que através da sua união tinham vindo ao mundo.



Memórias de nós, mais tarde, com os próprios filhos, a partilharmos, com um prazer inenarrável, aquele lugar. A revermo-nos nas crianças que agora subiam às árvores, tomavam banho no tanque e arreliavam a avó passando com a bicicleta exactamente por cima do tufo de lírios.

À noite, após o jantar na grande mesa da sala onde cabia a família inteira, mais os inseparáveis companheiros de fim-de-semana, verdadeiros amigos nos bons e nos maus momentos, passávamos ao salão onde se fazia de tudo um pouco. Havia os que jogavam cartas, os que liam, os que viam televisão e os que simplesmente conversavam, junto à lareira. Todos, sem excepção, desfrutando o aconchego do lar. Aquilo sim, era a Obra. A "nossa" Obra.

Continua a ser a nossa Ponte do Arco e, possívelmente, virá a ser a dos nossos netos e bisnetos porque uma obra assim não pode ser destruída. Cada nesga da casa, do jardim, guarda miríades de recordações, todas tão caras a cada um de nós, a família da Obra.




É com gosto genuíno que digo a quem
apresento a casa: foi aqui que eu nasci, exactamente neste quarto, que era o dos meus pais na altura, e passou a ser o meu, por direito consuetudinário ou por um simples acaso. Pouco importa.

Apesar da incomensurável angústia que neste espaço foi, de igual modo, vivida, aquando da partida do meu marido para a sua derradeira morada, no jazigo de família a uns escassos 500 metros da casa, posso falar de tudo isto sem tristeza. A vida é feita desta manta de retalhos, tal qual as lindas colchas de "patchwork" que a minha mãe fazia. É bom lembrar os tempos felizes, mas também não faz mal recordar os menos venturosos. Há, até, uma dor suave e terna nesta mescla de sentimentos.


Sou uma pessoa de lugares.


Quero aos lugares da minha vida como se de entes queridos se tratassem. E na minha vida tem havido espaço para tantos lugares... todos tão amados.


Talvez porque foi no mês de Fevereiro que, há cinquenta anos, naquele local de afecto, se fez ouvir o meu primeiro choro, hoje foi o dia da Casa. Da Obra. Da Ponte do Arco.




14 comentários:

Luís disse...

Maria:

Estou fascinado! É linda essa Obra: obrigado pela partilha. Senti-me a passear pelos corredores do seu passado... saio deste seu espaço mais rico.

Um beijinho

Anónimo disse...

Como colocar em palavras o que sinto neste momento? Como traduzir este tumulto de sentimentos que a tua "obra" me despertou? Infelizmente parece que não herdei os genes da escrita da parte materna mas queria, de qualquer forma, manifestar a minha mais profunda gratidão por teres expressado aquilo que todos nós sentimos...Foi tão recomfortante este passeio pelas memórias da nossa família e citando-te "Há, até, uma dor suave e tenra nesta mescla de sentimentos."
Só espero voltar a ver, em breve, a família reunida no salão a desfrutar dos nossos serões tão bem passados! Onde nunca falta o bolão da avó =)

Um beijo ENORME e um abraço apertado. E mais uma vez obrigada por me ajudares a recordar...

Maria Carvalhosa disse...

Ai tanta pieguice, minha Saricoquinhas!... mas nós somos mesmo assim... quero lá saber que a expressão de sentimentos "mimosos" esteja fora de moda ou possa chocar alguns espíritos mais pragmáticos que, a esta hora, já me apelidaram de "lamechas" e decidiram, definitivamente, deixar de visitar este espaço!... Lindo, é o adjectivo que melhor se adequa a este momento, tão tipicamente português, em que três gerações da mesma família aproveitam para "matar saudades" e se sentem mais próximas, não importa a distância quilométrica a que se encontram, nem o tempo atmosférico que se faz sentir em cada um dos lugares (ai, filha, logo tinhas que ter ido para um país tão frio!);)

Quem disse que não herdaste os genes do gosto pela escrita da via materna??? O que eu não te pude passar, porque os não tenho de todo, foi genes de cientista...

Mais um beijo para ti, com todo o carinho e pieguice do mundo, a rebentar de felicidade e de orgulho ao olhar-te (de longe, sim, mas não acabámos de concluir o contrário?) como qualquer mãe que se preza de o ser.

Maria Carvalhosa disse...

Amigo Luís,

Obrigada por me teres acompanhado neste passeio. Pessoa de lugares que sou, tenho todo o gosto em que me acompanhes noutros passeios por outros sítios de afecto. De facto a idade pode contar muito pouco... gosto muito, mesmo muito, da tua escrita, como sabes, e tu, que nasceste sensivelmente na mesma altura que a minha filha mais velha, dás-me a alegria de deixar, perante um post desta natureza, tão intimista e autêntico, este comentário! Agradecida estou eu, Luís. É bom encontrarmo-nos por aqui!

Um beijo.

jawaa disse...

Eu sou, também, uma pessoa de afectos e de lugares.

Que bonita a tua/vossa Obra e que bom poderes ter a certeza de que ela continuará!

Obrigada também por partilhares essa parte de ti.

Anónimo disse...

E de novo aquela velha sensação de pertencer ali, àquele espaço... Há muito tempo que não vivia tão intensamente as memórias da casa e das pessoas que tanto me dizem. Memórias alegres, memórias tristes, memórias quentes de verão e molhadas de lágrimas invernais pontuando a saudade de quem já não está entre nós. Ou estará?... Penso que sim, pelo menos enquanto nos lembrarmos de todos os momentos que passámos juntos e enquanto a saudade fizer rolar as lágrimas que não serão necessariamente de tristeza.
Obrigada por nos teres trazido o Arneiro e o colorido das sardinheiras.

Anónimo disse...

Sem querer, apareço como anónima, mas sou eu, miúda. Já rectifiquei.

aquilária disse...

gostei muito de passear pelos recantos deste lugar e desta casa, guiada pela tua escrita.
também eu sinto um profundo afecto pelos espaços que habito.
espero que a casa da Obra continue a ser muito amada e que a sua alma continue a ligar as várias gerações da vossa família.

um abraço grande

Maria disse...

Maria

À medida que ia lendo o teu texto sobre a "Obra" e vendo as fotografias apetecia-me ir para lá umas férias.
Depois veio toda a carga emocional e emotiva que carrego e da qual acho que não sou capaz de me separar, embora gostasse, e no final da leitura senti-te mais perto de mim.
Eu sei porquê. Afinal, não é só o mar, não é só a Ilha...

Um abraço grande e um beijo

Licínia Quitério disse...

Só agora vim aqui. A este teu lugar belíssimo e solene. É tão reconfortante sentirmos os sítios da nossa pertença. Mais bela ainda que a buganvília é a vossa corrente de ternura. Sinto-a, comovida.

Um meigo abraço.

M. disse...

Gostei tanto de te ler nesta tua casa de memórias.

bettips disse...

Vim aqui, claro. Chorar uma lagrimita, arrepiar-me do amor e do passado. Desejo sinceramente que mantenhas esse lugar tão LINDO, sente-se o maravilhoso simples (com história dentro). Que felicidade Maria, apesar de... apesar da morte, poder descansar da vida, ali! Beijinhos

Besnico di Roma disse...

Não entendo como pude passar este “post” sem deixar um comentário.
São coisas destas que eu gosto de ler e que tu tão bem sabes contar.
Apenas uma pergunta – o forno do pão ainda coze?...
Beijitos

Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) disse...

de vez em quando venho aqui e entro neste lugar e nele me instalo com a sensação de quem invade propriedade privada oferecida a uso público pelo seu proprietário com uso obrigatório das memórias e saudades escritas nos muros todos e escondidas nos baús dos sótãos e na ferrugem das panelas da cozinha e nas teias de aranha das divisões da casa voltadas a norte e passeio-me no exterior e sento-me no interior convivendo com gente de outros tempo que respondem às nossa perguntas sem nos podermos mutuamente tocar como se nós fôssemos protagonistas de um filme que corre dentro de um outro filme que já não pode ser alterado e há o jogo de luzes por onde passa a claridade uma espécie de translucidez de uma dimensão para a outra e o tempo apenas tem um ligeiro cheiro a antigo muito discreto




depois de me ter sossegado e aquietado e retemperado o ânimo para regressar ao lugar que ocupo no mundo que é agora e aqui e que mais ninguém ocupa e eu chamo a isso solidão porque o lugar só pode ser ocupado à vez por uma pessoa é uma lei da física pelo menos dizem que é uma lei da física outros dizem que é assim que quer nosso senhor seja como for regressei ao meu lugar mas não vim todo completo na minha identidade pois deixei lá um pequeno pedaço de mim e esse pequeno pedaço cuja ausência vou passar a portar comigo para toda a vida chamo-lhe eu saudade

A tua escrita é apetecível as tuas fotos têm o rigor do cinema e as imagens e os sons fluem integrados dentro de nós

obrigado Maria beijinhos