domingo, outubro 12, 2008

Espera sem Sentido

Before # 3 (*)

Preparava-me para a entrada em palco. Os últimos detalhes: o ajeitar do cabelo, o retocar da maquilhagem, o atar da sapatilha. Um estranho pressentimento havia-se instalado na minha alma. Um arrepio percorria-me o corpo, de cada vez que olhava para o relógio e via que os ponteiros avançavam vertiginosamente para a hora do início do espectáculo e, pela primeira vez, tu não tinhas telefonado.

Às 22h00 em ponto, sem nada dizer a ninguém, despi, atabalhoadamente, a roupa de dança, troquei-a pelas calças e pela camisola que tinha trazido, enfiei os pés nos sapatos e foi com o coração em ritmo acelerado que corri para o carro. Depois, para casa, onde entrei para me refugiar no nosso quarto. As minhas pernas não paravam de tremer, de uma forma incontrolável.

O telefone tocou. Alegrei-me, por um momento, supondo que eras tu...

Era o Director da Companhia de Bailado. Optei por não atender. Depois disso, tocou mais algumas vezes, mas nunca levantei o auscultador. Foram ficando sucessivas mensagens, ditadas pela sua voz grave e austera: primeiro de aborrecimento pelo meu inusitado desaparecimento; depois, de verdadeira zanga pelo facto de eu faltar ao espectáculo sem nada ter dito; por último, de alguma preocupação, acompanhadas de um pedido para que entrasse em contacto logo que possível.

Ao fim de, sensivelmente, duas horas, o telefone tinha deixado de tinir.

Waiting (*)
Estou cansada desta espera.
O desespero começa a apoderar-se de mim.
Por vezes vacilo, quase desisto, mas não consigo.
Aqui continuo, neste cansaço da espera: a espera de ti.

Quando compreendi que tinhas ido embora, sem deixar, sequer, um bilhete explicativo dos motivos que te levavam a abandonar-me, sem qualquer sinal de que havias, mesmo, ido para longe de mim, não quis acreditar.

Fiquei sentada no quarto, na cadeira de balouço, a olhar pela janela para as árvores que se agitavam com o vento, na vã expectativa de ouvir a chave rodar na fechadura, ouvir os teus passos na sala e ver-te entrar, com o meigo sorriso de sempre e uma justificação para o inesperado atraso.

Acabei por me esticar na cama, forçando o sono que teimava em não chegar.

Esperei toda a noite, sem conseguir adormecer.
Na manhã seguinte, decidi não ir ao Teatro. Que razão poderia eu invocar para atenuar a gravidade da minha falta? Em vez disso, vesti a roupa com que mais gostas de me ver dançar, calcei as sapatilhas e fui sentar-me no chão da sala. À tua espera: quando, finalmente, entrasses, começaria a dançar para ti, sem parar, até caír de exaustão nos teus braços, que me apertariam contra o teu corpo, como se nada tivesse sucedido.
O dia passou, lentamente, deixei de contar os minutos e as horas em que, ali sentada, com o meu mais lindo vestido, aguardava o teu regresso.

Veio a noite e continuei a longa espera.
Talvez se lhe tenham sucedido mais alguns dias e noites.
Perdi a noção do tempo.

Entregue à desilusão da tua ausência, ao desespero da solidão daquela casa, inexplicavelmente quieta, muda, sem vida, continuo, já sem forças, a aguardar o teu regresso, até ser sacudida, na escuridão da sala, pela fulminante luz de um relâmpago, imediatamente seguida do ruído ensurdecedor de um trovão.
Levanto-me e dirijo-me à varanda, ajudada como que por uma força exterior a mim, para fechar as janelas, abertas de par em par, e assim impedir que a chuva, que cai copiosamente, me invada o espaço, único bem que julgo restar-me.
Quando lá chego, grossas bátegas de água, trazidas pelo vento, açoitam-me o rosto, o corpo exposto, quase nú, o vestido de que tanto gostavas...

É então que pareço compreender: morreste. Estou liberta.

Não mais faz sentido a condenação àquela espera auto-infligida. A mágoa de teres desaparecido termina aqui, agora, à medida que a tempestade também vai amainando.

De repente, tudo fica claro: tu não mais voltarás e o mundo, lá fora, aguarda o meu retorno!


Dancing (*)

Recomecei os ensaios, de forma intensiva. Queria voltar a ser a bailarina que o público amava e se dava, plenamente, em palco, como forma de retribuir e agradecer esse afecto.

Ao fim de uns dias, tudo ficou a postos. Um novo espectáculo iria substituir o anteriormente interrompido, daquela forma brusca e nunca revelada. Mais um mistério adensava a minha vida... e esse facto espicaçava a curiosidade daqueles para quem eu me tinha tornado um mito.

Eu própria escolhi a música e desenhei a coreografia. Chamei-lhe "Espera Sem Sentido". O Director andava excitadíssimo com a perspectiva de um êxito de bilheteira. Os colegas eram gentis para comigo e não faziam perguntas: para minha surpresa inicial, acatavam as minhas directivas, sem qualquer contestação e, apesar de já ter coreagrafado de outras vezes, só agora compreendi que era considerada a líder do grupo.

Na noite da estreia voltei a sentir-me como noutros tempos. Durante o espectáculo fui um pássaro a voar naquele palco. Tive de novo a sensação de ter centenas de almas coladas à minha, a respirar em uníssono, comigo, suspensas de um passo, de um salto mais arrojado, de uma pirueta perfeita.

Nunca parei de sorrir enquanto dançava e, no entanto, lágrimas de pura felicidade rolavam-me pela face, ao mesmo tempo. Dançar era a minha vida. O que eu sabia e gostava de fazer. Mais: o prazer que dava àquela plateia, ávida de mim, era-me devolvido sob a forma de um sopro brando e morno, de genuíno êxtase.

No final da noite, foi uma mulher realizada que voltou ao camarim. Pedi que me deixassem a sós. Sentei-me na minha cadeira e deixei-me relaxar. Não tinha pressa e ninguém, ou nada, me esperava. Revi, calmamente, os acontecimentos recentes. De olhos fechados, percorri, como num filme dentro da minha cabeça, todos os detalhes daquela noite de glória.

Subitamente, bateram à porta. Chegava-me, do lado de fora, a voz da camareira, atrapalhada, que dizia: "Desculpe, minha Senhora, eu sei que pediu para não ser incomodada, mas está ali um senhor que afirma não abandonar o teatro sem a cumprimentar".

Sorri com gosto: por que não dar ao destino uma segunda oportunidade?

"Ele que entre, Cecília, mas só ele".

Quando a porta se abriu, os meus olhos embateram numa imensa braçada de lírios brancos.

O desconhecido baixou um pouco o ramo, e deixou-me entrever uns olhos azul-água, mais claros ainda porque marejados de lágrimas.

Depois, desceu-o ao nível do peito e vi o sorriso: aberto, terno, sem mácula. Único, afinal, insubstituível, porque mágico.

Levantei-me de um ímpeto e abracei-o. Do ramo de lírios, espalmado entre os nossos corpos unidos, subia um doce perfume, que me enlouquecia e fazia eternizar o beijo que conciliava as nossas bocas ansiosas.

Separámo-nos, por fim, e chorámos, rimos, dos lindos lírios amarfanhados, prestes a murchar com o calor que os nossos corpos haviam, sobre eles, exalado. Beijámo-nos muitas e muitas vezes, sempre a rir, e a chorar, e a balbuciar palavras loucas, nos curtos intervalos dos sôfregos beijos trocados.

Daquele dia em diante, passei a adicionar um acessório à minha indumentária de bailado: no cabelo, numa alça do vestido, preso junto ao coração, destacava-se, sempre, um perfumado e fresco lírio branco.

(*) pinturas de Júlia Calçada

20 comentários:

Anónimo disse...

Aqui nesta casa quase quieta, continuo numa espera que anseio que seja com sentido.
Obrigada pelo que escreves, obrigada por seres tu
Um grande beijo

Menina Marota disse...

Já li este texto na tua página do Multiply, mas voltei a (re)ler e a comoção permanece...

Belas as imagens da Júlia, de uma sensibilidade que só uma VERDADEIRA ARTISTA consegue!

Estou a colocar os linkes no meu Multiply e tomei a ousadia de linkar ambas.

Grata pela partilha.

Beijinhos e boa semana ;))

Maria disse...

Já tinha tantas saudades de te ler, assim...
E outra vez as pinturas de Júlia Calçada, tão bonitas...
Obrigada, Maria!

Um beijo para ti, outro para a tua Mãe

Anónimo disse...

Muito bonito! Sem mais palavras, parabéns.

bettips disse...

A beleza das palavras e sentimentos.
A beleza dos gestos, a cor dos sentimentos. Tudo tão bonito como pétalas.
Lírio faz sentido com o que ela pinta e tu desenhas com letras.
Bjinho

Maria Carvalhosa disse...

Querida Júlia,
Sabes que esta é a tua segunda casa e que, através de palavras, tento interpretar o que tu, de modo magnífico, exprimes em pintura. De cada vez que surges com um novo quadro, imediatamente esta minha "cabecinha louca" se põe a congeminar textos, contos, poemas. É a minha forma de partilhar, contigo e com os outros, o que sinto ao olhar, pela primeira vez, algo que tu pintaste.

Acho deliciosa a forma como as nossas formas de expressão se complementam... afinal, não é por acaso que somos primas-irmãs (como, noutros tempos, se designavam os primos em primeiro grau). Curioso mesmo, é o facto de
suceder, frequentemente, connosco, o mesmo que, segundo costa, acontece entre irmãos-gémeos: a capacidade de comunicar à distância, de sentir o que o outro sente, na felicidade, como na angústia.
Adoro-te e adoro as tuas pinturas, minha querida. Continuemos nesta cumplicidade que nos preenche!
Beijo-te com muito carinho.

Maria Carvalhosa disse...

Querida Otília,

A tua sensibilidade é um poço sem fundo... és uma mulher maravilhosa que, para além de partilhar a sua arte, vibra com a arte dos outros e a divulga, de forma completamente desinteressada, através de todos os meios que tem ao seu alcance.
Já te disse isto, noutro sítio, mas repito: já tinha muito boa impressão a teu respeito, ainda antes de te conhecer pessoalmente.
Conhecer-te foi a confirmação de que tu és um ser humano dos mais bonitos que me foi dado encontrar.. e estou grata ao destino por esse facto.
Só uma curiosidade: a nossa avó comum, muito amada por todos os netos, de que se salientam a Júlia e eu própria, que fomos as primeiras netas, também se chamava Otília... e tinha uma coração de ouro (coincidência interessante, não?) Não o digo por dizer, esta é uma verdade que, ninguém que a tenha conhecido, se atreve a desmentir.

Obrigada, minha querida, por tudo o que me tens dado, e à comunidade de amigos que te rodeiam (e já são muitos, sabes bem disso!).

Beijos sentidos.

Maria Carvalhosa disse...

Querida Maria,

Muito obrigada pelas tuas palavras, sempre tão genuinamente sentidas (tenho a certeza!).
Também eu tenho saudades... principalmente de voltar a estar contigo, já que o nosso encontro foi revelador de um afecto profundo e promissor de novos e repetidos convívios de franca amizade e partilha. Temos tanto em comum, minha amiga!...

Ah, antes que me esqueça: a minha mãe pergunta muitas vezes se tenho tido notícias tuas e pede-me para não me esquecer de te mandar beijinhos, sempre que falar contigo... claro que eu, "cabeça de alho-chocho", esqueço-me sempre. Mas... atenção... que fique registado - não me esqueci desta vez: muitos beijinhos para a Maria da Ilha, enviados, com intenso afecto pela mãe, Noémia Carvalhosa.

Beijos meus para ti, doce Maria, com toda a ternura.

Maria Carvalhosa disse...

Amigo João Norte,

Muito obrigada pelo teu conciso, mas muito gentil, comentário.
Aceito, com enorme prazer, os teus parabéns... e retribuo com votos de muito sucesso para os teus livros e para os da tua pequenina-GRANDE Catarina.

Beijos carinhosos para ambos.

Maria Carvalhosa disse...

Amada Bettips,
Fico tão sem-jeito perante os teus comentários... é que, tu sabes... a minha dívida para contigo é tão grande... e eu gosto tanto de ti! Será que, algum dia, conseguirei retribuir, em medida idêntica, o carinho com que me tratas, a confiança que depositaste em mim?
Tentarei não te desiludir.
Beijo-te com muita ternura e saudade.

Maria P. disse...

É um prazer ver a harmonia entre estas duas artes, gostava de dizer mais, mas sou de poucas palavras, se pudesse deixava uma fotografia para comentar este "post".
Qual? Uma ponte.

Beijinho*

Maria Carvalhosa disse...

Uma ponte, que bonita ideia, querida Maria P. E, como diz o Pedro Abrunhosa: "Que nunca caiam as pontes entre nós".

Beijos, amiga.

http://www.youtube.com/watch?v=UsOH6oqqBGk

12:02 AM

Graça Pires disse...

Maria, este texto tem tudo: movimento, música. emoções. E tem a solidão e a lucidez. "É então que pareço compreender: morreste. Estou liberta."
Um beijo.

Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) disse...

É o que acontece às meninas patarecas: voltam sempre à boca do lobo.

Como sabes, não sou muito dado a emoções. O meu psico-torturador diz que sou um sociopata homicida e repugnante que só chora de amor pelos seus gatos. Para lhe provar que gosto de mais coisas ainda um dia lhe hei-de fritar os rins em cebolada. Mas deixemos isso que com o apetite espevitado não consigo escrever.

Eu gostava mais que a menina se tivesse dedicado às artes. Mas não, ficou-se nas beijoqueiras lambuzadas com direito a pindericalhos na alça do vestido. Esta não percebi, mas não tenho que perceber sempre tudo.

Fiquei com a sensação de que não fiz o comentário.

Porquê esta sensação?

Vou voltar brevemente e fazer um comentário comme il faut.

Maria Carvalhosa disse...

Graça, minha amiga,

É muito importante para mim quando te manifestas a propósito de algo que escrevi. Sabes como admiro a tua escrita, a tua (invejável) leveza ao fazer poemas... lindíssimos, com a naturalidade de quem respira como factor indispensável à sobrevivência.

Beijos afectuosos.

Maria Carvalhosa disse...

Olá Rodrigo,

Acho-te um pouco menos perdido hoje... ou talvez não. Possivelmente sou eu que estou de bom humor e, por isso, te encontro mais facilmente.

Como sei que não és muito dado a emoções, não esperaria, nunca, que te sensibilizasses com um texto desta natureza... Melhor ou pior, directa ou indirectamente, já te vou conhecendo um pouco...

Achei interessante, apesar de tudo (e talvez daí ter-te encontrado hoje mais humano) o facto de teres admitido que não tens que perceber tudo. Extraordinário!

Não me interessa nada que tu gostasses mais que a dita bailarina se dedicasse mais às artes... isso é opção minha, uma vez que fui eu que criei aquela personagem (sugerida pelas pinturas da Júlia, é claro) e, como tal, sou que decido se ela prefere, ou não, beijocas e lambuzadelas a um bonito "pas de deux". É evidente que tens todo o direito de dizer que não gostas mas, Rodrigo Rodrigues, filho de ti próprio, não podes pretender ir além disso. Os teus gostos e preferências, apesar de algum respeito que nutro por ti (ainda não sei muito bem porquê...) não conseguem ter qualquer eco na forma como escrevo: "désolée, mon cher...!"

Um aperto de mão e até outra oportunidade (já que abominas "lamechices", detestaria sentir que, por causa da uma beijoca minha, tinhas ficado com "pele de galinha").

dona tela disse...

Tenho um prémio para lhe oferecer.

Muito bons dias.

Patanisca disse...

Ai a menina metida no seu tutu e empinada na sapatilha de ponta em cetim é um amor mesmo. Que ternurinha, que perfeição de linhas! E o rapazinho? "olhos azul-água, mais claros ainda porque marejados de lágrimas" Ai como gosto de navegar nuns olhos assim.

Ai!

Beijinhos.

Maria Carvalhosa disse...

Dona Tela,
Obrigada pelo acesso ao prémio.
Já deixei um "recadinho" no seu espaço.
Um beijo.

Maria Carvalhosa disse...

Beijinhos para ti, Teresa Sofia. E, já agora, permite-me um conselho de alguém que já anda por aqui há mais algum tempo do que tu: não te deixes influenciar tão fortemente pelo sarcasmo do nosso (mais teu do que meu) amigo Rodrigo. As verdades dele, como as de qualquer outra pessoa, estão muito longe de ser absolutas...