terça-feira, novembro 11, 2008

A irrelevância de um prefixo


Julguei conhecê-la. Vagamente. Passou-me ao lado na vida. Cruzámo-nos, algumas vezes.
Doutras, chegámos a estar tão próximas como estou da minha imagem num espelho.

Nunca gostei dela.
Nem ela de mim, suponho.

Agora, suporto-a melhor. Afinal, acabámos por envelhecer juntas e, se eu pensava que ela me tinha passado ao lado na vida, estava enganada: foi a seu lado que a minha existência sempre se desenrolou.

Não é a minha sombra, muito menos o meu reflexo. É a minha antítese, o contra-ponto com o qual convivo todos os dias e que me influencia de tal modo subreptício que chega a tomar, por mim, decisões que afectam, irremediavelmente, o meu quotidiano e medidas de longo prazo.

Cheguei a ter medo dela.
Agora é quase afeição o sentimento que desperta em mim.

Noutros tempos, quando pensava nela, só me ocorriam palavras começadas por "in" para a qualificar e, sem recorrer ao dicionário, saíam-me, de enxorrada, uma lista de defeitos que, dirigidos a alguém de verdade, soariam a insultos:

insensível
incapaz
indolente
inflexível
insuportável
indecorosa
incompetente
ingrata
insatisfeita
inconstante
inconsciente
incontrolável
inconsequente
incompreensível
inconsistente
indisciplinada
inconveniente
incorrecta
infernal
infecta
insana
insonsa
interesseira
impudente
intolerável
infiel
...

e poderia ficar a desfiar o rosário durante horas.

Mas que perda de tempo, penso hoje. E dou comigo a tentar encontrar-lhe qualidades, todas igualmente começadas pelo prefixo "in"que, dirigidas a alguém de verdade, poderiam soar a elogios:

inteligente
insubornável
interessante
inspiradora
incansável
insinuante
inovadora
inigualável
informada
ingénua
influente
infalível
irresistível
intensa
inaudita
independente
indestrutível
indulgente
incisiva
indescritível
instruída
inimitável
inesquecível
inocente
inestimável
insubstituível
...

e, mais uma vez, a lista poderia alongar-se até ao limite da vontade.

Sei que um dia partiremos juntas. Julgo igualmente saber que, quem nos recordar, não saberá de qual de nós fala, nem sequer que éramos duas, de cada vez que utilizar um dos adjectivos da primeira ou da segunda lista. Pouco me importa se isso suceder. Não seremos nós, na verdade, as duas faces de uma mesma moeda?

Margarida Costa in "A Outra"

23 comentários:

Graça Pires disse...

Duas fazes da mesma moeda: incómoda e incerta. Como são as suspeitas que teimam em deter-se no olhar de quem ama...
Um belo texto Maria. Um beijo.

Maria Carvalhosa disse...

"Como são as suspeitas que teimam em deter-se no olhar de quem ama..."
És espantosa, Graça. Cada comentário teu é uma dádiva e um prazer.
Beijos.

vieira calado disse...

Olá!

Boa tarde.

Muito bem concebido,
este apontamento!

Cumprimentos

Maria Carvalhosa disse...

Olá Vieira Calado,

Agradecida pelo seu gentil comentário, envio-lhe um beijo.

Colibri disse...

Olá Maria,

Venho agradecer a tua gentil visita no meu cantinho de "Colibrir as Emoções"... e aproveito para visitar o teu lindo cantinho...

Cada um de nós tem a sua anti-pessoa.

Eu diria que saltamos entre a nossa figura modelo e a anti-modelo...

Vivemos entre o nosso orgulho e a nossa vergonha... Escondendo, muitas vezes de nós próprios, aquilo de que não gostamos... mas também com a satisfação das coisas de que nos orgulhamos...

Mas somos isso tudo, um mar de contradições mas também de sentimentos e de qualidades...

Beijocas

Colibri
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As minhas últimas rapidinhas nos blogs…
Quero de volta o meu grito de guerra!
Parte 9 – Saltinho a Cabinda...
Macros do outro mundo (parte 1)
Tenho novo Blog – Cair na Gandaia (Só é obrigatório rir…)

Maria Carvalhosa disse...

Olá Colibri,

Agradeço a tua visita e o muito oportuno comentário.

Já me passeei pelos teus sítios, como sabes, e desde logo te adicionei aos "espaços que visito".

Até breve e um beijo,

MySelf disse...

Porque será que os textos que escolhes, me dizem sempre tanto?

Um beijinho, querida amiga

Anónimo disse...

Olá, voltei para matar saudades, o que eu tenho perdido por não navegar nestas águas, deixo um abraço.

vieira calado disse...

Olá, de novo!

Vejo que me pede para eu aderir a um novo esquema de permutas na internet.

Olhe, eu bem gostaria de fazê-lo mas, por um lado, não sei como fazer e pelo outro, digo-lhe com sinceridade, já tenho tanta coisa... e tão pouco tempo...

Talvez mais tarde.

Mas, muito grato pela intenção.

Beijinhosss

Maria Carvalhosa disse...

Querida amiga myself,

É sempre um prazer renovado receber-te e sentir que existe esta empatia.
(Vamos lá ver se ainda conseguimos almoçar juntas antes do Natal!...)

Beijos ternos e até breve.

Maria Carvalhosa disse...

Amigo Juda,

De facto é dia de festa quando me visitas! Mas o que é preciso, mesmo, é que não nos percamos um do outro. Obrigada pelas tuas gentis palavras e um beijo com carinho.

dr x disse...

É difícil e doloroso se despedir de tantas coisas de uma só vez...
tantos in.... No meu travesseiro, ás vezes bêbado, ás vezes sóbrio, me pego pensando em quantas pessoas estão simultaneamente na mesma viajem que eu.....interessante isso

beijos
as duas faces

dr x disse...

Poesia iluminada..sempre são...Talvez eu seja louco de querer que a noite seja um pouco mais verdadeira e sincera com as pessoas...

beijos

mac disse...

podia perfeitamente ter sido escrito por ti,... sobre ti, claro.

you're still the same.
you too. e é tão bom n'é?

Maria Carvalhosa disse...

Dctorxix,

Obrigada pela visita, inesperada e algo surpreendente. Talvez fruto de um mero acaso que não venha a repetir-se... ou talvez não.

Até...(?)
Beijos.

Maria Carvalhosa disse...

Pois podia, Mac. As coisas que tu sabes!!!... ;)
Beijos, com genuína saudade.

jorge esteves disse...

A Palavra é, de facto, um infinito sortilégio!...
Gostei!

abraços!

Maria Carvalhosa disse...

E tu és, de facto, um amigo insuspeito. Adorei!
Beijos.

Maria disse...

Excelente este "jogo" de palavras...
Claro que conto estar lá em Mafra. Quero tanto... preciso tanto...

Beijos e até sábado
(hoje vi a nossa ilha ao longe. amanhã vou vê-la mais de perto...)

Maria Carvalhosa disse...

Que bom, Maria, minha amiga muito querida. Até sábado, então.
Muitos beijinhos.

Maria P. disse...

Estas palavras tocam...
A tua sensibilidade toca.

Beijinho*

Anónimo disse...

A dualidade de nós
a mim, ainda me deixa exausta.
Lindo o texto: um dia o descobrirei.

Ou não saberei que para alguns dos meus fui "imprescindível" Talvez desapareça, ignorando-o.
Bj de Bettips

Anónimo disse...

ler todo o blog, muito bom