segunda-feira, abril 06, 2009

Um hotel sobre o mar

Foto de António Rodrigues
Olhou, demoradamente, a magnífica paisagem que a janela do seu gabinete lhe oferecia. "Pela última vez. Sem pressas. Ela que espere." Disse para si próprio, enquanto uma pontada desconfortável lhe oprimia o peito, um nó na garganta o impedia de engolir a água que havia acabado de levar aos lábios e uma irreprimível neblina lhe começava a toldar a vista ocultando, assim, parte da beleza que tanto queria que a sua retina guardasse.

O telefone voltou a tocar. Era novamente a secretária de Laurinda: "Dr. Maurício, lamento a insistência mas a Presidente aguarda-o na sala de reuniões com o Dr. Fernando e dois advogados e parece-me que começa a ficar impaciente com a sua demora". "Obrigado, Paula. Estou a ir". Após ter desligado, tentou recompor-se do recente momento de fraqueza. Pigarreou, para aclarar a garganta, respirou bem fundo duas ou três vezes, passou um "kleenex" nos olhos para apagar qualquer vestígio de humidade, voltou as costas à janela e saíu, com passo firme e determinado, rumo à sala de reuniões.
Quando entrou, esperavam-no todos sentados do mesmo lado, de costas para uma outra janela panorâmica, com a mesma vista de sonho. Sentou-se do lado de cá, de frente para os oponentes e, consequentemente, para a deslumbrante vista que o acompanhava há três anos, desde que fora trabalhar para aquele hotel como director de marketing.
Laurinda começou: "Ora bem, agora que já estamos todos, não vamos perder mais tempo. Como sabe perfeitamente, os tempos são de crise e todas as medidas têm que ser tomadas o mais rapidamente possível". Deixou de a ouvir, "mas o que faz aqui o Fernando? Ainda ontem à noite bebemos um copo no bar e não me disse absolutamente nada. Olha o sacana! Poderia, ao menos, ter-me preparado minimanente, evitando assim que esta situação se me apresentasse tão constrangedora. Sempre pensei que era meu amigo. Grande amigo me saíu. Os directores de recursos humanos são todos iguais, quando chega a hora da verdade estão sempre do lado do patrão, a tentar proteger o seu lugar, pois é claro... e os amigos (amigos, o que é isso?) que se lixem!"
Voltou a ouvir a voz estridente de Laurinda "há que reduzir os custos" e voltou, imediatamente para os seus pensamentos "é evidente, agora já não precisam de mim. Fiz o trabalho de reconstrução todo. Consegui tirar este hotel da sarjeta e transformá-lo num dos locais mais procurados para sessões de trabalho das empresas e fins de semana de lazer durante todo o ano. No Verão, então, não cabe aqui um alfinete..." Laurinda continuava "por essa razão, os estagiários e recém-licenciados que demonstraram estar à altura" enquanto Maurício pensava para dentro "e agora, que os "meninos" já aprenderam comigo como dar continuidade ao trabalho e só têm que manter o barco em velocidade de cruzeiro, levo um xuto no cú e boa viagem".
O timbre de Laurinda, habitualmente inócuo para os seus ouvidos, agora quase lhe perfurava os tímpanos "os nossos advogados elaboraram o contrato que tem na sua frente e que lhe peço leia atentamente, antes de assinar". "O quê, indignou-se Maurício sem proferir palavra, mas isto é "atar e pôr ao fumeiro"? Estes gajos são mesmo demais. Num dia não sei de nada, no dia seguinte estou a assinar a minha sentença de morte. Só falta mesmo pegarem-me na mão e ajudarem-me a fazer uma cruz como assinatura!". De seguida lembrou-se dos filhos: depois do duro golpe da morte da mãe, a Mariana recuperara o equilíbrio emocional e estava a acabar o secundário, com planos para arquitectura e o João, já igualmente conformado com a perda, encontrava-se a meio do curso de Engenharia de Comunicações. Como é que ía conseguir chegar a casa e dizer-lhes: "meninos, vamos ter que rever as nossas prioridades. O subsídio de desemprego, que vou passar a receber, é muito mais do que insuficiente para o nível de encargos que criámos com base na realidade de ontem e para os projectos que tínhamos em vista para amanhã".
Foi então que a frase que saíu da boca de Laurinda colidiu com a sua linha de raciocínio. Como é que "a percentagem sobre a facturação pode parecer irrisória mas, quando aplicada sobre os lucros excelentes que temos conseguido desde que o contratámos..." jogava com um acordo de rescisão? Esforçou-se por deixar de ouvir a sua voz interior e passar a escutar Laurinda que, neste momento, dizia "além do mais, apesar de 20% do capital social não ser uma quota extraordinária, parece-me justa e adequada ao seu óptimo desempenho, funcionando assim como prémio e incentivo, já que o Maurício passa a ser, simultaneamente, meu sócio, e dos meus irmãos, na propriedade do hotel, ocupando o cargo de vice-presidente. A verdade é que eles não ligam nenhuma a isto e concordaram imediatamente em prescindir de parte das suas quotas para alijar responsabilidades. Sabe o que lhe digo? Parece muito mais que o sangue dos Ataíde corre nas suas veias do que nas deles".
Por esta altura, Maurício transpirava, tinha dificuldade em respirar e quase deixava que os seus olhos se marejassem de lágrimas, exactamente por motivos opostos aos que o tinham feito sentir sintomas idênticos há cerca de meia-hora atrás. Começava a pesar-lhe alguma má consciência por ter sido, embora que por breves momentos, injusto para com a Presidente que sempre lhe merecera a maior estima e o respeitara e, até, para o seu único verdadeiro amigo, com inúmeras provas dadas, desde o primeiro momento em que o integrara nos quadros do hotel, o director de recursos humanos.
"Perante o seu silêncio presumo que está de acordo, Maurício" prosseguia Laurinda Ataíde que, aqui, fez uma pequena pausa no discurso e sorriu. A voz dela, estranhamente, agora parecia-lhe suave e doce "assim sendo, vamos passar à assinatura dos contratos e os nossos advogados poderão, em sequência, marcar a escritura de doação de quotas. Quanto ao complemento de remuneração, o Dr. Fernando Meneses procederá, já este mês, ao processamento da comissão acordada sobre a facturação do mês transacto."
Maurício permanecia num mutismo inexplicável. Incapaz de balbuciar fosse o que fosse, levantou-se e dirigiu-se ao outro lado da mesa, com intenção de agradecer à Presidente, apertando-lhe a a mão. Laurinda, porém, antecipou-se-lhe. Recuou um pouco para junto da janela e, após uma olhadela rápida ao sol que estava prestes a esconder-se onde o mar parecia acabar, deixou-se ficar de perfil e, de braços abertos, disse, comovida "Parabéns, Maurício. Ora venham de lá esses ossos".
Nota da Autora: Este é um texto de ficção. Qualquer semelhança entre o local fotografado, personagens, ou conteúdo do conto com a realidade é pura coincidência.

5 comentários:

dona tela disse...

Apesar das circunstâncias vigentes, auguro-lhe uma Boa Páscoa.

Até breve.

Maria disse...

Afinal, no meio de tanta crise, uma surpresa boa...

Um beijo imenso para ti, Maria

bettips disse...

Completamente FICÇÃO, acho eu! Quem reconhece o quê, ainda para mais metendo família e quotas percentagens lucros...? Só mesmo uma "panelinha de outra gente" que sabe da gamela onde se governa.
E o teu Maurício parece-me boa alma demais para esse esquema!
Gostei da prosa e do enredo, anyway.
Bjinho

Graça Pires disse...

Um belo texto, Maria.
Uma excelente Páscoa para ti.
Um beijo.

bettips disse...

Junho 09
Quem me dera que estejas bem. esses dois sorrisos, tu e mãe.
Vi uma roseira como a tua. em Maio já a desfolhar-se.
Estranho como se associam gostos e pensares.
Beijo