sexta-feira, janeiro 13, 2006

Berlenga - a ilha do sonho


[...] " A Ilha já não é um poiso solitário, morada de gaivotas, de airos, de galhetas e pardelas. Todos os fantasmas acordam e andam aqui, sorridentes, longínquos, vaporosos como a própria luz que se escoa pelos rochedos teimosos; escorrem-se, transluzentes, pelo musgo viçoso, sobem misteriosamente as escarpas sombrias da restinga e acenam do alto, das ameias velhinhas do forte - ninho de heróis e de corsários -, que nos surge, vindo dos esconsos brumosos do passado, imponente e simples, acanhado e soberbo na sua traça guerreira que se resolveu abrir as portas de par em par e oferecer-se, na solicitude de um romântico repouso, aos visitantes pacíficos, ávidos de uns momentos de paz e de sossego...



As canhoneiras descansam. Pelos adarves já não se passeiam as sentinelas, atentas aos assaltos da pirataria. As casamatas são acolhedoras. Os terraços , abertos ao sol e ao horizonte...

Sob o Forte de S. João Baptista, uma pequenina jóia enche-nos a alma de sonho: é a Gruta Azul, pequena reentrância onde mal cabe a lancha que nos transporta, surpreendente recanto de paraíso onde o azul tem mais cor, onde tudo é azul: a água, a rocha, o céu que se reflecte, as mãos curiosas que se mergulha na toalha líquida em busca de um segredo que se não pode desvendar, porque impossível, porque pertença de um mundo só beleza diáfana...



A Gruta da Lagosteira é apertada e escura como breu. Mas a água brilha, pintalgando em fantasia o fundo assombroso, verde, azul e doirado, das areias, dos seixos e das algas. Penetramos, afoitos, curiosos, sedentos de descobrir o mistério profundo deste abrigo de fantasmas. O fim parece não surgir: é tudo escuro - por cima, à volta... só o fundo se exibe numa claridade difusa, arrastada pelas profundezas desde a entrada da caverna. E lá adiante há um ponto vermelho, um olho luminoso que nos espreita de qualquer abertura, que se esconde e atravessa o dorso rijo da Ilha, como veia sanguínea de luz, divina transparência a criar um reflexo de encantamento e magia. Nem os remos se ouvem, receosos de negar ao silêncio a sua eloquência.
Mas o belo ainda se não acabou neste paraíso de mar, perdido num fascínio verde-azul...

[...]
A Ilha, agora, abre-se, desvenda-se, rasga-se profundamente no ventre fértil como se se preparasse para a hora de um parto gigantesco, abrindo nas suas entranhas miraculadas o Túnel do Furado.

A lancha baila de manso sobre as águas suavemente onduladas, sulcando uma floresta aquática de surpreendente vegetação. As algas acastanhadas, escuras, executam bailados estranhos, dantescos, descobrindo a espaços a areia dourada do fundo pedregoso, e como que nos oferecendo os braços enormes, coleantes, monstruosos, para um outro bailado. É uma beleza que arrepia, de tão selvática e tão simples, de tão encantadora poesia e tão sortílegos contrastes. A rocha, junto às águas, baba-se, indolente; e, a meia altura do paredão deixa entrever fosforescências que atravessam a Ilha e penetram, por escaninhos estreitos e abissais, até chegarem, difusos, vaporosos, misturados de névoa...
[...]
Vamos ao encontro da face oeste da Ilha, mais batida de mar. Não entramos nas furnas e canais com o sossego que a orla oriental nos permite... Mas que beleza ainda! Que românticas e maravilhosas perspectivas!...


O Cavalete , outro pequeno ilhéu, continua o roteiro de beleza , embora a luz e a cor já sejam outras, embebidas de sol. E sentimo-nos impelidos a continuar, como se um íman misterioso nos atraísse poderosamente.



[...] tomamos o caminho (...) rumando o canal estreito e ondulado, aparentemente eriçado de perigos, da Greta de Inês. De um lado, o Felonte, dorso de ilha a afogar-se na garganta de mar; de outro, o Ilhéu da Inês, atrevido, minúsculo, a saber a aventura.
Ali, ao fundo, uma pequena baía e um buraco negro, como boca aberta na rocha: é a gruta de Flandres. Há qualquer coisa de fantástico, de grande e impossível de descrever. Tentamos falar e os lábios , entreabertos de maravilha, não reagem, e caminhamos silenciosamente , absortos no claro-escuro do ambiente de sortilégio, no mágico silêncio apenas quebrado pelo chapinhar brando dos remos.



A noite cai, sossegada, num beijo prateado de nostalgia. A lua banha as encostas, recortando sombras e fantasmas pelas arribas. O farol risca, a espaços certos, o horizonte , como aviso aos mareantes. As pardelas rasgam o silêncio, quebrado apenas pelo açoitar sereno das ondas, com os seus pios solitários e supersticiosos.

E para além da escuridão, apenas entrecortada pela luz branca do farol, que teima em rodar iluminando o horizonte, para além da saudade que nos arrasa já, bem fundo, a alma enamorada, adivinhamos os contornos vagos da Ilha, das grutas recortadas em arabescos irreais, das alga irrequietas nas águas translúcidas.

Adivinhamos, pressentimos, palpamos misteriosamente toda a beleza, todo o sortilégio da Berlenga - a ilha do sonho..."


Notas:
1) Textos de Mariano Calado, extraídos do livro "Peniche na História e na Lenda", 4ª edição, 1991
2) Fotografias a preto e branco tiradas pelo meu pai, nos anos cinquenta

8 comentários:

Paulo Cunha Porto disse...

Lindíssima panorâmica, Maria, sobre um arquipélago que também me encantou, há uns bons vinte anos. Lembro-me que almocei lá, num sítio prvilegiadíssimo.
Parabéns. E que inveja de Quem está tão perto da maravilha...

Anónimo disse...

E como já te disse várias vezes, embora com outras palavras, não quero ser mais um desses fantasmas ou pardelas emitindo o seu triste pesar por nunca ter visitado a Berlenga. Lugar de sonho sim, mas mais ainda por ser descrito por ti desta maneira. Lá iremos, num bote a remos ou nadando, porque o sonho pode ser vivido de várias maneiras.
Beijos

João Villalobos disse...

É fantástico. Há muito não vou lá. Quando é que recomeçam os barcos?

Maria Carvalhosa disse...

Caro João,
As travessias oficiais, a cargo do velho barco "Cabo Avelar Pessoa", (que, para alegria e maior comodidade e segurança dos passageiros, já foi substituído, mantendo embora o nome do corajoso militar... mas isso é outra história...) fazem-se de Julho a Setembro.
Existem, no entanto, embarcações particulares que, por um preço idêntico, asseguram a travessia ao longo de todo o ano.
Um abraço.

MusicMan® disse...

Sinceramente não tenho palavras..toda a nostalgia que sinto quando penso e vejo a berlenga...
Não há nada que me tenho marcado mais que esta ilha aparentemente tão pequenina....
Só quem passa por lá e convive com aqueles pescadores singelos, com a Mariete e o Verissimo, e tem a oportunidade de usufruir da simplicidade desta ilha, é que compreende o que dizemos nós, os Berlengudos....

Maria Carvalhosa disse...

Penso que te compreendo, Musicman, e até quase posso adivinhar quem és. É bom sentir que o amor, a paixão que sentimos pelos lugares é sentida por outros, cada um à sua forma, é certo, mas não deixa de ser uma partilha que aquece o espírito.

Abraço.

greentea disse...

a Berlenga é lindissima...
no verão passado quizémos la ir;
saímos de Lisboa com um sol maravilhosso e ao chegarmos a Peniche chovia torrencialmente e as viagens tinham sido canceladas pois nem o primeiro barco tinha conseguido aportar nas Brlengas...
ficará a viagem para outro verão.

Anónimo disse...

Obrigado por intiresnuyu iformatsiyu