domingo, março 05, 2006

O Valor do Tempo


Tirou da prateleira do móvel a ampulheta que os filhos lhe tinham oferecido de presente no seu quadragésimo aniversário. Encaminhou-se para a mesinha da sala, colocou-a bem à sua frente, no sofá onde se sentou, e sorriu, ao pensar na ironia.
Cinco minutos. Era o tempo preciso que os pequenos grãos de areia levavam a passar, pelo estreito orifício, entre os reservatórios da ampulheta.
Deu-lhe mais uma volta e ficou a olhar para cada grão de areia que escapava, inevitavelmente, da parte superior para a inferior do dispositivo, assinalando, com exactidão, a fracção de tempo que lhe cabia.
Voltou-a novamente. Era compulsivo.
Reiniciou o processo, uma e outra vez, sem conseguir afastar os olhos, por um instante, do mecanismo que lhe prendera a atenção e para o que representava: o fluir do tempo.
Aflorou-lhe à memória uma frase que ouvira muitos anos atrás, da boca de uma personagem feminina de meia-idade, numa peça de teatro a que tinha ido assistir com uns colegas da Faculdade. Curioso como lhe surgia agora, completamente fora do contexto da altura, para tão bem se aplicar ao seu presente: "quando se chega à minha idade, os dias custam a passar, e os anos passam a correr."
O sol, através dos vidros, incidia sobre a ampulheta e conferia um brilho quase mágico à areia que, no seu ritmo inalterável, ia escapando pelo orifício.
Com gestos repetitivos, como uma criança autista fascinada com o seu brinquedo preferido, virava e voltava a virar a ampulheta, a contar o tempo, sem dar pelo tempo passar...
até que o sol deixou de iluminar a sala e o crepúsculo se apoderou de todo o espaço.
Lídia não conseguia parar de brincar com o seu jogo novo.
De rompante, qual furacão, Miguel entrou na sala, atirou com o saco de desporto para um canto, acendeu a luz e disse "Olá Mãe. Está às escuras? Estou cá com uma fome. Fico sempre assim depois do ténis. Tenho que me despachar. Depois de jantar ainda tenho que ir buscar a Susana. Hoje é a ante-estreia da longa-metragem do Marco. Quem diria, hem? Aquele puto ainda vem a ser um realizador de mão-cheia. Vou tomar um duche num instante, enquanto a mãe me põe a comida na mesa. É verdade, tive exame de biologia. Correu-me bem. O João e a Teresa também vão. Encontramo-nos à entrada do CCB. Bom, não tenho tempo a perder. Isto é uma correria louca. Sinceramente, não sei como há gente que consegue ter tempo para tudo".
Lídia entreabriu os lábios para falar. Demasiado tarde. Miguel já tinha fechado a porta do quarto e a água a correr no chuveiro era o único som passível de ser ouvido.

12 comentários:

Paulo Cunha Porto disse...

Querida Maria:
o teu texto fez-me lembrar a distinção de E. Junger entre tempo concreto, que se tem e domina, simbolizado pela ampulheta ou pela clepsidra e o tempo que nos domina e se não controla, abstracto, imposto pelo relógio de ponteiros, ou pela rádio/TV. Boa!

Sem nada ter a ver com isto, convido-Te a visitares os comentários do meu "post" «O Direito à Diferença», onde o Nosso Amigo de Espanha deixou uma oriental citação sobre os livros que, creio, te agradará.
Beijinhos.

João Villalobos disse...

Este texto, muito bem escrito como está, tem no entanto um detalhe que particularmente me enerva. O facto de o rapaz parecer ter já idade para tratar da sua própria comidinha e não o fazer, dando por adquirido o serviço da mamã.
Que queres, é o meu lado severo de pai de duas criaturas a falar ;)

Hata_ mãe - até que a minha morte nos separe Hugo ! disse...

:(((

mac disse...

sorrio a bandeiras despregadas, também com um dos comentários.
que giro é ler a tua ficção, pejada de ligações telúricas.
mas é lindo ver gente que sente assim: sonhar, também, com o que (já) tem de melhor.
delightful.

Vasco Pontes disse...

Olá Maria,
Obrigado pelo prazer que, cada vez mais, a leitura do que escreves me proporciona. Como sabes, aprecio muito este contar de histórias que tanto ultrapassam o simples dizer. Aprecio também a forma como o estilo se vai depurando, procurando a forma de provocar a emoção.
Beijos...

Hata_ mãe - até que a minha morte nos separe Hugo ! disse...

Desta vez, venho mais alegre para dar-te um beijinho, linda Maria

L. Rodrigues disse...

O tempo em que paramos para pensar no tempo não servirá para multiplicarmos o tempo em que não tivemos tempo para pensar?
Para assim podermos realmente viver todo o nosso tempo. O que passa devagar, e o que passa a correr.

Maria Carvalhosa disse...

Querido Paulo,
Só o teu vasto conhecimento consegue encontrar significações eruditas para a minha escrita, situada ao nível básico do empírico.
Obrigada pela dica do comentário do "nuestro hermano".
Beijos.

Querido João,
Agradeço o teu comentário e sou solidária no que diz respeito à dependência do "matulão" em relação à comidinha da mamã. Também eu tenho dois... embora ele seja bem pior que ela, nesse aspecto. Como expectável, de resto, mas não mandatório, entenda-se...
Bjs.

Vasco, tu "sabes-me" bem demais... tens a certeza de que não foste eu numa outra encarnação??? ;)beijos... (cúmplices, pois então!...)

Caro MAC, não estou segura de te perceber inteiramente. Aquela história das "entrelinhas", sabes?
Beijos e um abraço de parabéns pelo dia 7 de Março.

NoitEstrelada, minha amiga,
não queria mesmo nada que a minha historinha te deixasse triste. Talvez não tenha sido isso... não sei... depois, pareceste-me mais animada.
Um abraço bem apertado.

Caro L.,
como tu adoras complicar o que é simples! mas... também por isso, gosto de ti.
Um abraço.

Hata_ mãe - até que a minha morte nos separe Hugo ! disse...

Oh querida,
O primeiro comentario, não tinha a ver con o teu post, mas sim com o que deixaram ficar no meu...
É a ultima coisa que quero, é que as pessoas se entristeçam...era apenas um sinal de que eu estava triste.
Depois, como não foste lá, voltei com receio que fosse mal interpretado, como foi. mas apressei-me a dizer que estava mais alegre, sem dizer porquê, para não fazer publicidade ao meu blog que estava uma nojeira, com um comentario.
Espero que esteja tudo esclarecido.
Eu até gosto das coisas bem humoradas, desde que não sejam ofensivas, aquele era. Depois apaguei, já passou. Não sei porque sempre sou eu, mais vezes atingida.
Um beijo linda, o teu post é fabuloso, sabes bem que é um dos cantinhos, este teu, onde me refugio à noite para ler um pouco.
Até breve, amiguinha

Isabel José António disse...

Que texto bem escrito! É o retrato de algo que não gosto muito da nossa sociedade, mas talvez por isso mesmo tem um propósito pedagógico que não estraga a beleza estética da forma como foi consebido e escrito!

Parabéns, escreve muito bem.

Um abraço

Isabel

Isabel José António disse...

...E nesta louca correria, nem temos tempo para apreciar o tempo! Nem sequer pensamos que "atrás do tempo, tempo vem".

E passam-se os dias, as horas, os minutos, e a própria vida, por vezes, escoa-se-nos por entre os dedos, como a areia da ampulheta.

Quando damos por isso, os filhos já não são pequenos, têm ideias próprias e às vezes já nem sabemos quem são.

Mas nós permanencemos, estagnados ou a evoluir, permanecemos. SOMOS.

Se soubermos SER, encontramos um mundo incomensurável de oportunidades de nos encontrarmos a nós próprios.

Um abraço e parabéns pela escrita que é fluida e cheia de ritmo.

José António

Maria Carvalhosa disse...

Isabel e José António,
Muito obrigada pelas vossas sempre simpáticas visitas e comentários.
Beijinhos para ambos.