“Em Kyoto, quando soubemos, como foi que soubemos que sabíamos?”
A emoção, na voz dela, era sentida ao fazer a pergunta.
As mãos dele responderam, desenhando com elas o rosto da mulher, lentamente. Paravam um pouco, depois recomeçavam a desenhá-lo, com a sabedoria de quem esculpe. Com a facilidade de quem conhece. Intimamente.
Ele disse: “Soubemos. Sabemos. Não é por acaso. Você acredita no acaso?”
Ela pensou que não sabia nada de acasos. Apenas tinha a convicção de que, por um qualquer motivo nunca aprofundado, sempre tinha evitado encarar qualquer acontecimento como o resultado de uma predestinação. A inevitabilidade associada a esse fatalismo assustava-a, como a assustavam as mãos dele que, naquele momento, desenhavam o seu rosto. Que poderiam ter desenhado todo o seu corpo com a legitimidade que lhes era conferida pelo acto de criar.
Disse: “Não sei nada de acasos. Acho que não acredito. Sei que não gosto de pensar nisso como coisa certa, preparada por Outrém, inevitável.”
Olharam-se demoradamente, perturbados pela força da memória comum que os invadia. Ela disse: ”Nunca tinha estado numa Terra assim: Santa, prenhe de magia, perfumada, peregrina.”
Então ele falou, em voz muito baixa, ao ouvido dela “Somos cúmplices do espírito de Kyoto. Isso é tudo.”
Ela não respondeu. Ficou muito quieta, por uns momentos.
Depois, agarrou as mãos que lhe desenhavam o rosto e beijou-as. Chorou. Molhou aquelas mãos de homem quase velho com as suas lágrimas e os seus beijos de mulher quase nova.
Ele beijava-lhe os olhos, de onde jorravam as lágrimas, e desenhava, com os seus lábios, a boca que lhe beijava as mãos.
Foi nessa altura que ela disse: “Podia morrer agora. De plenitude. De ter sentido o que senti. Que sentimos. Juntos. Um só.”
Ele começou a dizer coisas loucas, indizíveis, enquanto a abraçava, lhe acariciava os cabelos, lhe beijava os olhos e as mãos.
Ela não se movia. Deixava-se agarrar, beijar, sacudir, enquanto ouvia as palavras desconexas que ele murmurava, repetidamente.
Quando ele se detinha para a olhar, deparava com um sorriso de prazer desconhecido, e isso dava-lhe a certeza de que ela estava a fruir o momento como coisa única, certa, preparada por Outrém, inevitável.
Estiveram assim muito tempo. Talvez tenham dormido, também.
Depois, de repente, ela levantou-se e disse, com uma secura até para ela inédita: “Vou-me embora. Saio pela porta da frente. Fecho-a com violência e não olho mais para trás.”
Ele pediu-lhe que ficasse. Que não saísse pela porta da frente. Que não a fechasse com violência e, sobretudo, que, se o fizesse, ao menos olhasse para trás.
“Não posso.” Disse ela. “Tem que ser assim se não queremos estragar o que existiu. Foi muito bonito. Belo é insuficiente para qualificar o que tivemos, nós dois, os do passo trocado”.
Fez uma pausa enquanto olhava, fixamente, o horizonte.
Depois disse, em tom conclusivo:
“Assim deve ficar, como um Panneau do Castelo do Shogun, os Jardins de Sayonara, o Templo Dourado”.
Tendo dito isto, saíu pela porta da frente, sem a fechar.
Teria dado uns dez passos quando se voltou para trás e lhe sorriu...
1 comentário:
um texto antigo
um tempo novo
sabor de inverno a chegar
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