terça-feira, abril 24, 2007

Escrito na pedra (ou na água?)


Estavam sentados na esplanada do costume, junto à falésia, à beira-mar. Há longos minutos que ela olhava o o horizonte, sem uma palavra. Ele olhava-a, como se nada mais existisse para além da presença dela, a seu lado. Ela sentia o seu olhar fixo no rosto, no corpo, mas o facto não a incomodava. Naquele momento, o silêncio, a inexistência de troca de palavras entre ambos era o que realmente importava.
A empregada passou e a mulher pediu mais um whisky, sem gelo. O homem, num gesto de solidariedade, pediu mais uma água, sem gás.
Estiveram assim muito tempo.
A dada altura ela disse "deve estar a interrogar-se sobre o que vai na minha mente. Gostaria de o poder adivinhar, não?"
"Precisamente", respondeu o homem.
"Pois bem, tenho estado ocupada com pensamentos acerca dos meus afectos: os pais, os irmãos, os amigos, as memórias dos namorados, amantes e maridos e os filhos, claro. Acima de tudo, a ausência dos meus filhos ocupa-me muito tempo, preocupa-me, perturba-me".
"Compreendo, embora não saiba o que isso é. Sou filho único, como sabe, os meus pais já partiram há muito, nunca casei e não tenho filhos, mas..." aqui deteve-se abruptamente. A mulher olhou para ele e deparou-se com a expressão aterrorizada de quem está à beira de um precipício, a quem basta um minúsculo passo para se atirar.
"Mas...?" insistiu ela, com determinação.
"Mas acho que sou capaz de entender o que sente. Além do mais, há as personagens dos seus romances e argumentos, não é?"
"Ah, sim, essas, a quem dei vida e para quem fui construindo um mundo. Tornaram-se exigentes, ganharam vida própria e agora são elas que me levam a reescrever, das mais variadas formas, a mesma história de sempre."
"Deve ser cansativo".
"Sim, por vezes fico exausta. Como já deve ter reparado, para aguentar a pressão, cada vez bebo mais e - disto não sabe - passo noites inteiras a escrever".
"Os homens gostam das mulheres que escrevem...", murmurou ele.
"Sim, a Marguerite Duras afirmava-o e acrescentava: ...mesmo que não o admitam. Uma escritora é um país estrangeiro."
"Eu amo-a". Disse ele, de rompante, quase num sussurro.
A mulher não deu mostras de ter ouvido aquela confissão inesperada e surpreendente.
Já que tinha dado o tal passo e estava a deixar-se escorregar pelo abismo, o homem continuou, com eloquência e num tom de voz um pouco mais alto "Não imagina a vontade que sinto de agarrar as suas mãos entre as minhas e apertá-las, com força, de encostar o rosto ao seu cabelo e sentir-lhe o aroma, de lhe afagar o rosto, beijar os olhos, o pescoço, a boca. Não faz ideia de como a desejo... de como sonho, noite após noite, que estamos a fazer amor."
"É provável que eu também o ame", respondeu a mulher, com frieza, o olhar novamente fixo no mar.
"Como assim?" perguntou ele, perplexo, "o amor é apenas uma probabilidade?"
"Agora é a minha vez de citar a Marguerite Duras: Donde pode nascer o amor? Talvez de uma súbita falha do universo, talvez de um erro, nunca de um acto de vontade."
"Acredita realmente nisso?"
"Talvez... mas deixemos a Marguerite Duras com os seus axiomas, que são óptimos de utilizar quando não sabemos o que dizer ou não queremos aprofundar as nossas próprias verdades. E para quê o recurso a um arquétipo? O mesmo de sempre, afinal. Eu não sou ela, não sou nem nunca serei alcoólica, nunca amei como ela o fez e jamais escreverei como só ela sabia escrever".
Ele ajeitou-se na cadeira, um pouco incomodado com o rumo que a conversa estava a tomar.
Ela aproveitou o ensejo, levantou-se e fez sinal à empregada para trazer a conta. De seguida, em tom suave, como se tivessem somente passado mais uma das muitas tardes calmas à beira-mar, disse ao homem que havia acabado de lhe fazer uma declaração de amor, "Vamos andando? Está a levantar-se uma brisa fresca".
Contas feitas, e já a saír do café, ainda lhe confidenciou "tenho lá em casa uma garrafa de whisky irlandês por abrir e espera-me uma longa noite de escrita".

20 comentários:

Anónimo disse...

fabuloso texto, maria. adorei ler.

(ali na terceira frase, tem um "s" a mais - sem uma palavra...)

desculpe o impulso do comentário. não sou ninguém para avaliar da qualidade literária do que escreve

beijinho.

Maria Carvalhosa disse...

Querida Alice,

Obrigada pelo generoso comentário e pelo alerta para o "s" em excesso. Já corrigi.

P.S. Uma chamada de atenção para uma gralha não é uma avaliação literária (risos)... e se fosse? Viria daí algum mal ao mundo? Sinta-se à vontade para comentar e avaliar da qualidade de tudo o que eu escrevo.

Um beijinho, minha amiga.

Ana Prado disse...

Qual a razão de nunca ter verdadeiramente reparado nesta escrita??
Li de um fôlego apenas e vou reler uma vez mais.
Enquanto isso, deixo cravos.

M. disse...

Gostei muito, Maria. Tão vivo, como se eu estivesse lá sentada na esplanada e ouvisse as palavras trocadas entre eles.

Nilson Barcelli disse...

Não sei onde nem como foi escrito.
O que sei, é que foi bem escrito.
Sabes prender o leitor, com uma prosa bem delineada e muito clara.
És uma escritora nata. Podes escrever romances com facilidade.
Beijos.

Isabel José António disse...

Caríssima Maria,

Um texto com elan de escritora. Nessa fluidez com que escreve, existe um mundo de situações, de emoções (umas contidas outras não), de perpelexidades, de interrogações mudas, de enganos e desenganos, de "fintas" que as personalidades vão fazendo umas às outras na "esgrima" constante que tecem mutuamente.

Desencanto puro e simples, mas com pose, com sofisticação.

Muitos parabéns

Continuaremos a visitá-la.

Um grande abraço

José António

Luís disse...

Fiquei preso Maria. Escrita envolvente, assim como a história. É sempre um prazer passar aqui uns momentos =)

Anónimo disse...

não me fiz entender, maria, desculpe. a gralha não teve nada a ver com o comentário. devia ter escrito de outra forma. a qualidade do texto não fica afectada por ela. foi um aparte. votos de bom fim de semana ;)

Maria Carvalhosa disse...

Alice, minha amiga,

Eu percebi logo de seguida mas, por preguiça, não me dei ao trabalho de esclarecer o mal-entendido. O importante é que se mantém o que disse relativamente à crítica literária. Venha ela!

Beijinhos e bom fim-de-semana.

Jal disse...

Bem bom o texto.
Foto excelente!
Parabéns.
Regressarei aqui, através de um barco que irá aportar nesta foto.

Anónimo disse...

adoramos o seu blog...participe com os seus lindos textos em www.luso-poemas.net
seria um enorme prazer:)
beijao

Paula Raposo disse...

Excelente o que acabei de ler! Um beijo.

Isabel José António disse...

Querida Amiga Maria,

Acabámos de nomeá-la no nosso blogue "O Caminho do Coração" como um dos blogues que nos fazem pensar...

Agora, terá que ir copiar o selo do "Pensador" e colocá-lo no seu blogue e depois, se quiser, poderá nomear cinco blogues que a façam pensar!

Um abraço,

Isabel

Isabel disse...

Hum... estou a absorver a brisa entre o cálida e o quase gélido que vem das tuas palavras com as dela.
Lindo!
O que vem de ti... belo e denso como eu gosto.
Lindo o que vem dela...
Um cheirinho ao longo de teu texto de Emely L.
E as palavras de alguém que homenageia M Duras com a sua escrita própria, a tua escrita Maria, e que fala de si e do que o seu coração sente o seu pensamento pensa de si e do mundo com a sua linguagem falada pelas suas personagens.
Adorei Maria!
Foi um enorme momento...

Isabel

bettips disse...

Esta rosa chá e esta esplanada, mais um sentir perdido em palavras. Obrigada pela gentileza. Bjinho

Amita disse...

Misteriosas as noites dos ritos em papel branco desfolhados.
Que beleza de conto Maria! Ou apenas divagações em traços...um encanto!
Um bjinho grande e uma semana de sol intenso e claro

Maria disse...

Querida amiga

No dia 26 de Abril fiz um post com uma foto da.... Papoa...
... e as ondas são quase iguais...

Perdi o texto. Desculpa. Porque fiquei-me, toda, na foto..

Beijinhos

Maria disse...

Voltei. Para te ler outra vez, sem olhar para a foto.
Excelente, o texto...

Beijinhos, Maria

Anónimo disse...

Excelente, Maria.
Já tinha saudades de um texto assim.

Um beijo e um abraço.

mac disse...

já me faltam as palavras para descrever um cenário assim.
...isso era no tempo em que os teus olhos...
sem gelo, certamente, para não disfarçar a pureza dos prazeres vivos e quanto ao viver: o que se lê de Marguerite podem ser aldeias povoadas de imaginação que não devem ir além do sonho que também podemos ter. porque o viver,... isso é muito mais delicioso e rico, como saberás como poucos o sabem.
um beijo