Júlia Calçada - óleo sobre tela (2007)
Mais uma noite de glória que chegou ao fim. A “primeira” bailarina voltou a demonstrar que continuava a merecer, por inteiro, o destaque no corpo de bailado. O público, delirante, aplaudiu-a de pé durante largos minutos enquanto uma chuva de ramos de flores ia adornando o palco, à sua volta, e o som de “bravo” soava dos vários cantos da sala. O sonho da Margarida, menina, não poderia ter-se concretizado de forma mais absoluta.Tinha atingido o topo, excedidas que estavam as suas próprias expectativas. Dir-se-ia que não tinha senão razões para se sentir feliz.
Já a Margarida, mulher, dava por si claramente possuída de uma tristeza inexplicável. Agora que o espectáculo tinha acabado, ia voltar para casa onde, à sua espera, tinha a solidão. Depois de uns afagos ao gato, que sempre celebrava a sua entrada com visível prazer, iria beber um copo de leite morno e repousar o corpo no leito, demasiado espaçoso, demasiado vazio. O pensamento, esse manter-se-ia activo por tempo indefinido. Depois, viriam os sonhos, os que não controlava, os que lhe mostravam, como num espelho, de forma repetida e obsessiva, uma mulher igual a ela. Ao lado dessa Margarida, que ocupava o lado errado da cama, havia um homem. Conseguia ouvir a sua respiração e sentir-lhe o calor, de tão próximos que estavam. Não se tocavam e, na quase obscuridade do quarto, não conseguia distinguir os traços do rosto daquele cuja compleição física adivinhava perfeita.
Sete horas. O despertador voltava a acordá-la quando, no sonho, se preparava para acender a luz e ver, finalmente, o companheiro de mais uma noite. Ao correr para o chuveiro ainda olhava, de soslaio, para a cama, agora um espaço deserto. No teatro, esperava-a mais um dia de exaustivos ensaios, sem intervalos para outra actividade que não fosse a resposta às suas necessidades básicas de ser humano, e à noite... à noite voltaria a ser a rainha, a mais amada, admirada e invejada bailarina à face da Terra.
Já a Margarida, mulher, dava por si claramente possuída de uma tristeza inexplicável. Agora que o espectáculo tinha acabado, ia voltar para casa onde, à sua espera, tinha a solidão. Depois de uns afagos ao gato, que sempre celebrava a sua entrada com visível prazer, iria beber um copo de leite morno e repousar o corpo no leito, demasiado espaçoso, demasiado vazio. O pensamento, esse manter-se-ia activo por tempo indefinido. Depois, viriam os sonhos, os que não controlava, os que lhe mostravam, como num espelho, de forma repetida e obsessiva, uma mulher igual a ela. Ao lado dessa Margarida, que ocupava o lado errado da cama, havia um homem. Conseguia ouvir a sua respiração e sentir-lhe o calor, de tão próximos que estavam. Não se tocavam e, na quase obscuridade do quarto, não conseguia distinguir os traços do rosto daquele cuja compleição física adivinhava perfeita.
Sete horas. O despertador voltava a acordá-la quando, no sonho, se preparava para acender a luz e ver, finalmente, o companheiro de mais uma noite. Ao correr para o chuveiro ainda olhava, de soslaio, para a cama, agora um espaço deserto. No teatro, esperava-a mais um dia de exaustivos ensaios, sem intervalos para outra actividade que não fosse a resposta às suas necessidades básicas de ser humano, e à noite... à noite voltaria a ser a rainha, a mais amada, admirada e invejada bailarina à face da Terra.
10 comentários:
Eu prefiro a série dos jarros.
Uma excelente pintora, de facto: excelente escolha!
Excelentes trabalhos.
De facto a série dos jarros é lindíssima.
A harmonia de todas as artes está conseguida,no quadro.
A solidão é que presiste no intimo das palavras.
Quando puderes dá um saltinho ao meu blog =)
Interessante como o teu texto nos revela o outro lado, o privado, de tantas estrelas que admiramos e que nós desconhecemos. Temos tendência a admirá-las e a endeusá-las e a esquecer que a vida dessas pessoas não é só no palco e que elas também têm momentos semelhantes ao comum dos mortais. Gostei muito.
Creio que o sentimento é geral - "a solidão é que persiste no íntimo das palavras". Não sei se gosto mais da série dos jarros se desta. São ambas lindas e em jeito de resposta ao teu desafio, deixo aqui o meu aplauso ao trabalho da Júlia.
O espectáculo terminara e foi mais um êxito a juntar aos de Paris, Londres, Roma, Berlim, Viena…
Ah, Viena! A inesquecível noite vienense e o inesquecível e fugaz momento em que pensou que a solidão chegara ao fim. Uma noite em que repensara a sua vida e começara a organizar a dois, tão certa estava da verdade que afinal não era!
… e a ovação deste público, levantado, entre bravos e flores atiradas aos seus pés, inundando-a com o calor do triunfo, o único que actualmente lhe aquece o franzino corpo de bailarina.
Tem convites para cear, convites para se juntar a um grupo de pessoas conhecidas, mas não irá. Desculpar-se-á com uma imensa fadiga, com a necessidade de descansar.
As luzes diminuíram, a cortina desceu sobre um vulto dobrado, num misto de agradecimento e desânimo, e com as sapatilhas ao ombro saiu para a noite nova-iorquina, uma noite quente como a outra longínqua em que pensara que a solidão chegara ao fim.
Maria Torres
O SONHO DA PRIMEIRA BAILARINA
Hoje, depois do último aplauso, depois das luzes se apagarem, depois das portas do teatro encerrarem, depois do último autógrafo, depois do último ramo de flores, vou ter tempo para mim, pensou a bailarina quando finalmente os seus pés tocaram o chão.
Com passos humanos, atravessou a porta dos fundos, saiu para a rua, invisível, disfarçada no seu corpo humano, que não o da bailarina.
Não tomaria o caminho de casa. Não iria regressar a casa pelos caminhos da fama, não iria regressar para a solidão, não iria regressar para a sua cama vazia, preço da dedicação ao trabalho, à sua arte.
Desta vez partiria à descoberta de antigos caminhos, que já percorrera, quando ainda mal se equilibrava nas duas pernas, no seu andar desajeitado de menina que sonhava ser bailarina.
Atravessando as ruas da cidade, ofuscada pelos anúncios luminosos, pelas luzes vermelhas e verdes dos semáforos aos quais já nem prestava atenção, corria vertiginosamente em busca do sonho.
Aqui e além ainda viu a sua fotografia e um cartaz que anunciava a lotação esgotada do espectáculo de amanhã. Carregou a fundo no acelerador da viatura descapotável que conduzia, deixando entrar o ar morno da noite que lhe afagava o cabelo solto. Que bem lhe sabia sentir o cabelo solto…
Para traz ficava a cidade, ficava o público, ficavam os fotógrafos a imprensa, os contratos e os compromissos sociais. Na sua frente ficava a estrada, serpenteando em curvas apertadas ao longo da falésia escarpada, do fundo da qual lhe chegava o som do mar.
Os faróis rasgavam a noite e mostravam-lhe o caminho da liberdade.
Era possível, ainda havia tempo, talvez ainda houvesse tempo…
Seguia agora numa velocidade vertiginosa na esperança de ainda chegar a tempo.
Olhou para o lado, nervosamente procurou a maldita caixa dos comprimidos que não encontrava, precisava deles.
A estrada tornou-se subitamente mais suave, o carro parecia voar, sentia um silêncio e uma tranquilidade absoluta, como só os anjos podem experimentar.
Despertou da sonolência em que estava, a seu lado um braço forte de homem envolvia-a na ternura de um abraço, no rosto um beijo suave e uma mão de criança que lhe afagava o seio, um beijo do filho que nunca chegou a ter.
Estou vaidoso.
Desta vez consegui postar um comentário.
Beijinhos para ti miúda.
Maria,
Referia-me, como é óbvio, a este texto e não ao de cima. (As pinturas da JC continuam a ser uma maravilha, independentemente do texto!)
Beijo.
Brilhante!...
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