No dia em que partiste deambulei, como um fantasma, pela cidade. Fui até ao porto, mas não procurei abrigo em nenhum dos barcos que ali estavam atracados. Na fortaleza, desci até às celas da cave. Detive-me um pouco por lá, ouvindo o som das ondas a embater na parede exterior. Um forte cheiro a humidade tornou a minha permanência desconfortável e voltei para o ar livre, de onde espreitei o mar por entre uma ameia da muralha. Estava agitado e escuro, como que a prever um temporal. O coração apertou-se-me ainda mais. Porquê partir num dia de eminente borrasca? Poderiam ter esperado que a tempestade passasse... ou não? Será que no alto-mar as águas estavam calmas e era só ali, à volta da Península, que o tempo instável se fazia sentir? A minha ignorância sobre a matéria fazia, sem dúvida, que os medos me povoassem o espírito. Afinal, os marinheiros e pescadores não iriam aventurar-se à toa. Eles sim, eles melhor que ninguém, conheciam as idiossincrasias do mar que tratavam por tu.
Deixei-me perder nas ruas estreitinhas, onde pessoas entravam e saíam das lojas e dos bares. Chorei. Deixei que as lágrimas fossem rolando enquanto caminhava. Tinhas acabado de partir e eu já morria de saudades.
Por fim, aproximei-me de um canteiro de amores-perfeitos. Tinha chegado ao jardim. Pensei de mim para comigo que, para além daquelas flores, se algum amor houvesse que fosse perfeito, seria o nosso. Limpei o rosto molhado e sorri. Aproximei-me da cascata e sentei-me na relva de outro canteiro. Naquele jardim, todos os canteiros tinham amores-perfeitos, das mais diversas cores. Pareceu-me um bom augúrio. Voltei a sorrir e deixei que uma pequena lágrima, agora de provável alegria, me escapasse. Fiquei a observar a cascata e a ouvir os sons que o jardim me oferecia: pássaros que cantavam nas árvores, abelhas que zumbiam e procuravam o néctar das flores, a água que, livremente, se deixava caír pelas rochas, formando um pequeno lago esverdeado.
Dei por mim a pensar que duas semanas não eram uma eternidade para quem sabe esperar. E depois, a alegria do regresso sobrepunha-se a todas as dores sentidas, a todas as noites sem dormir, a todos os pesadelos com naufrágios e monstros marinhos. Vida de marinheiro, vida de pescador, vida de mulher de pescador..., era a que eu tinha escolhido. Para o bem e para o mal. Olhei para o relógio. Ai!... Perdida no tempo tinha-me esquecido que ele pode passar a correr. Estava na hora de ir buscar os miúdos à escola. Ao jantar, iria estar um lugar vago na mesa, mas a alegria das crianças, os seus beijos e abraços, as histórias das tropelias do dia, iriam atenuar a imensa falta de ti e ajudar a suportar a tua ausência, com ânimo e boa-disposição. Se não acontecesse nada (e longe fosse o agoiro) dali a quinze dias já estarias a jantar connosco, a contar as aventuras de mais uma viagem e a genuína alegria voltaria a inundar a nossa casa... (até à próxima viagem, mas nisso pensar-se-ia mais tarde!).
(*) Fotografias de António Rodrigues
17 comentários:
cara maria, após uma certa ausência do seu blog, adorei vir e ser recebida por este magnífico texto. obrigada pelo prazer que me proporcionou. um grande beijinho.
Querida Maria,
Não sei como exprimir o que senti ao ler este teu texto. Pareceu-me tudo muito autêntico, mas tu não podes ser a mulher de um pescador. Ou antes, podes, mas será que a mulher de um homem do mar escreveria assim, ainda que possa sentir como sua cada uma das palavras que aqui escreveste?
Não respondas a esta questão tola... o que importa se é real ou ficcionado?
Um beijo.
Olá Maria
Lindo o texto, cheio de sensibilidade, de conhecimento do que pode ser o desespero das mulheres que em terra ficam, esperando, esperando...
É seguramente o cheiro desse mar que te faz escrever assim...
A eterna espera de quem fica em terra, enquanto o homem sai para o mar... nunca sabendo se volta ou não...
Tão linda esta estória, querida Maria....
Beijinhos
Maria, gostei dos amores-perfeitos
e também acho que são um bom augúrio. O texto é lindo. Um beijo.
A terra e o mar já agora um farol... deixo um abraço...
Os amores dos marinheiros são sempre amores-perfeitos temperados pelo sal do mar, pelo sal das lágrimas.
Os marinheiros são assim, quando o mar os chama largam tudo e vão. Ninguém os vê chorar, mas às vezes choram na partida. Na faina. Nas aflições do mar traiçoeiro que tanto é abundante como condena à míngua.
As recordações que o teu conto me trazem à memória no mar da Povoa. As angustias das mulheres de negro vestidas em dia de temporal e naufrágio à boca da barra. Tempos difíceis. Sabes, aos poucos os velhos lobos-do-mar morrem todos, um dia somos um país só de memórias de marinheiros. Vazios, demasiado vazios…
Abraço deste lado do mar hoje que troveja
querida maria,
os olhos de um coração apaixonado, buscam e encontram, em tudo, sinais.
abraço, grande
Lindo o texto, os amores, os comentários: "País só de memórias de marinheiros"... O mar inspira-nos! Que o teu tempo esteja mais ameno, desejo. Bjinho
Que harmonia entre palavras imagens, quase se ouve o som da água, se sente o cheiro das flores...Lindo.
Bom fim de semana*
Beijinho.
como poderia eu perder as graças do mar?não navego num barco,mas navego num amor grande e lindo.
tony
Querida Amiga Maria,
A história que escreveu é muito bomita. Bem contada e matizada pelos sentimentos que a personagem narradora deixa transparecer.
A vida, tal como na canção do Sérgio Godinho, é feita de pequenos nadas.
MUITOS DESSES PEQUENOS NADAS SÃO GRANDES TUDOS.
Quem sabe interpretar as núvens sobre o mar, se é para tempestade ou para o vento as dissipar?
Quem aprendeu a esperar pelo homem que ama, com alguma serenidade e entregue ao que a vida lhe traga?
Quem aprendeu a brincar com as crianças preenchendo, de alguma maneira, o vazio da outra ausência?
E em que escola foi, que todas essas aprendizagens ganharam forma?
Que grande Universidade que é a vida!...
Um grande abraço e escreva sempre, sempre.... Muitos parabéns
José António
Olá!
No final da primeira geração de selos difusos pediste para avisar quando eu tivesse decidido aparecer novamente.
Na verdade, não desapareci... mas agora o silêncio quebra-se e há novos selos difusos que querem mostrar-se.
É impossível que um carteiro que sinta e sonhe não se identifique com muitas das palavras. As pequenas coisas... são as pequenas coisas que nos conseguem tirar de sítios onde mais nada consegue chegar. E nós, tolos, que nem sempre nos lembramos que existem essas pequenas coisas..
Que linda história de amor perfeito a um pescador! :-)))
A angústia de ficar em terra esperando o regresso de quem partiu para o mar sempre foi um tema muito sensível para mim. Partilho contigo este
poema meu.
E agora vou ler tudo de novo. Porque está tremendamente bem escrito, até nos pormenores de permeio; em tudo! ... Senti-o!
Querida Maria,
Só hoje tive hipótese de vir um pouco à net e fiquei muito contente de poder vir visitá-la pois vejo que continua a escrever magnificamente!
Força e continue a brindar-nos com tanta beleza.
Um beijo,
Isabel
Maria, amiga linda,
Visualizo, com clareza, o deambular perdido desta mulher pela cidade. É uma mulher em tudo parecida contigo e é por isso que não podia ter sido outra, que não tu, a escrever este texto. O teu pescador tem razões de sobra para sentir orgulho pela mulher que escreve, por ele e para ele, tão sentida declaração de amor.
Um beijo com muito, muito carinho.
Tentando dar um pequeno contributo à beleza deste teu "hino", recordei o poema do "nosso" querido António Gedeão (que me permiti dizer num lugar de meditação da tua história):
"
FALA DO HOMEM NASCIDO
Venho da terra assombrada,
do ventre da minha mãe,
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.
Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo,
não tenho tempo a perder.
Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte,
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.
Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.
Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.
"
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