Conseguiu limitar o extenso volume do seu corpo ao espaço exactamente deixado pelas portas que se fechavam, naquela fracção de segundo. Entrou. O suor escorria-lhe da testa e as mãos ainda lhe tremiam. Verificou, com agrado, que o metro ía quase vazio. Sentou-se no primeiro banco. Respirou fundo, recostou a cabeça e fechou os olhos. "Agora só saio no fim da linha, seja lá onde for", pensou e sorriu, de si para consigo, sempre de olhos cerrados. "Escapei de boa, sim. Doutra como esta não me volto a safar". Emitiu um som semelhante a uma risada gutural e aninhou-se no banco, como quem se prepara para dormir. Meteu a mão no bolso do casaco e sentiu o pesado cordão de ouro, com uma bonita cruz encrustada de pedras, sem dúvida preciosas. Devia valer para cima de um dinheirão. E afinal tinha sido tão fácil: um simples empurrão, um "desculpe" balbuciado enquanto desapertava o fecho facílimo de abrir, e a corrida final para as portas que, por muito pouco, não se recusaram a deixá-lo entrar.
Para trás ficava o cais, despido de gente naquela manhã de domingo. Os bancos de madeira estranhamente desocupados. Apenas uma mulher alta, elegante, vestida de branco, com o cabelo castanho claro apanhado em madeixas, com um ar nitidamente perdido, torcia um lenço de seda azul entre as mãos. Cerrava os maxilares para não gritar e sustinha, com um quase imperceptível tremor de queixo, as lágrimas que, teimosamente, queriam abandonar os seus olhos verde-claros e precipitar-se pelo rosto, infiltrar-se pela blusa, dois botões aberta, e ocupar o lugar recentemente adquirido, e logo abandonado, pelo fio. No peito, arfando suavemente, estavam contidos os soluços, ansiosos por uma oportunidade para se soltarem e soarem bem alto, no interminável corredor dos carris do comboio. Se tal sucedesse, iriam por certo assemelhar-se aos uivos de um animal aprisionado numa gruta sem fundo. Imobilizada, não sabia o que fazer. Alguém a terá encontrado e levado dali, algum tempo depois, sem perceber o que tanto poderia ter abalado aquela mulher.
Na morgue do hospital tiravam mais um cadáver do frigorífico para ser autopsiado. Quando o médico legista o destapou não pôde deixar de reparar na beleza da jovem cujo corpo exibia as sevícias de um homicídio violento. Ainda antes de se lançar ao trabalho, a sua atenção foi captada por um pormenor: no peito bronzeado da rapariga era visível a marca de um colar, ou de um fio grosso, e bem destacado, a branco, entre os seios, o desenho de uma cruz.
(*) Fotografia de António Rodrigues
25 comentários:
olá maria,
gostei da tua história. gostei que tivesses escrito esta história.
beijos
Um quase-nada quotidiano da grande cidade. Provavelmente o metro chegou ao último cais à hora certa...
Boa história!
Abraço!
querida maria,
talvez pela leitura menos demorada do que o texto merece, este post deixou-me várias interrogações e apelou fortemente à minha imaginação. quem praticou o homicídio? o ladrão que, por um triz, conseguiu escapulir-se no metro ou a senhora alta e distinta a quem ele tinha furtado o cordão com a cruz e que torcia desesperadamente o lenço de seda azul entre as mãos? e se foi ela, o homicídio teria ocorrido antes do furto ou depois? quais as motivações? ou teria sido cometido por uma terceira pessoa que não aparece nesta história?
gostei, gostei muito.
abraço
Histórias que se cruzam e nos marcam a pele. E a alma.
Terrivelmente triste, mas gostei, Maria. Um beijo
Saio com um nó na garganta.
Mas claro que gostei de te ler. Outra vez, e outra...
Beijinhos
(o marinheiro que descobriste há pouco tempo ia para a ilha quando era pequenino...)
(gostei que se tivessem conhecido!)
Olá Vasco,
Parece-me ler nas entrelinhas do teu comentário que me preferes na escrita de contos do que na poesia. Não me engano, pois não?
Um beijo com sincera amizade.
Tinta Permanente,
Fico feliz por teres gostado da história. De escrever histórias sabes tu... e bem!
Um beijo.
Olá Aquilária,
Achei deliciosas as dúvidas que esta pequena história te levantou. Perfeitamente legítimas, de resto.
Na realidade, depois do teu comentário perguntei qual era a leitura de outras pessoas, que me deram as interpretações mais díspares. É muito curioso porque a minha intenção não era escrever um conto com várias leituras possíveis mas, agora que verifico que isso está a acontecer, fico a gostar mais do que escrevi. :)
...E assim concluo, na "pele", que é mesmo verdade que o leitor acrescenta sempre valor ao que foi escrito. "Mr. de La Palisse" tinha razão ao afirmar que o poder do imaginário está tanto do lado de quem escreve como do de quem lê... (lol) e é por isso que uma obra literária (e aqui já estou a extrapolar para um nível que não este) nunca se esgota em si própria. Estão sempre a surgir para elas (independentemente de terem sido escritas há 50, 100, ou mais de 2000 anos), novas interpretações, significados ocultos, referências dissimuladas, etc.. Enfim, esta é uma temática muito interessante sobre a qual poderíamos, certamente, ficar a dissertar o resto do dia mas, por agora, ficamos por aqui, não é?
(Se quiseres, para não cortar o "suspense" criado, conto-te,por mail, qual a "minha" versão da história)... ;)
Um beijo amigo.
Querido Luís,
... e dessas marcas, para nossa desdita, sabemos nós bem, não é verdade?
Beijo terno.
Amiga Graça,
A vida pode ser assim: triste, triste como esta história, não é?
Mas também não precisa de ser sempre assim. Num dia qualquer de primavera,de repente, pode ficar alegre... verdade?
Beijinhos e obrigada pelo comentário.
Querida Maria,
Também queria ter lá estado!...
Achas possível, ou desejável, um dia destes encontrarmo-nos "ao vivo" lá pela nossa terra?
Gostei muito de conhecer o teu amigo marinheiro. Acho que também vamos acabar por ficar amigos (com tantas afinidades!...)
Beijinhos grandes e até breve.
Escreves bem, com uma limpidez que facilita a vida ao leitor.
Neste texto apreciei o que dizes também nas entrelinhas.
Julgo ter percebido o teu "guião" ao escreveres a história, mas, como dizes acima, os textos são sempre passíveis de mais interpretações.
Beijos.
Grata pelo comentário, Nilson. És uma pessoa que, verdadeiramente, "lê". Sei que me entendes, nem que seja nas entrelinhas... ;)
Beijos.
querida maria,
se tivéssemos sido amigas de infância e adolescência, teríamos dado enormes dores de cabeça aos nossos pais. :D :D.... imagino-nos a congeminar histórias e a perdermo-nos em divagações, sem dar pelo passar das horas. ou a metermo-nos num comboio, até ao fim da linha, sem avisar ninguém e fingindo que partíamos para um país desconhecido... cheguei a fazer isso com 12 anos, podes calcular o susto (entre muitos outros) que preguei à família!
ora bem, ando ocupada com um projecto que me retira disponibilidade para muitas coisas mas... fica assim combinado, se a ideia te agradar: no fim de semana, a detective aquilária e o seu fiel ajudante, o rafeiro "lost", vão visitar os locais-chave, bem como observar atentamente alguns objectos relacionados com a história. domingo à noite, já teremos "cozinhado" a nossa versão, que te enviarei por email, esperando que me envies, também,a tua.
abraços
Bom, muito bom.
Deixo aqui um beijito.
Difícil o momento de te agradecer, aqui, entre dois belos posts teus. E algo que também percebi de ti, dificil falar de dor. Dou-te a mão e agradeço as tuas palasvras, de irmãos de espírito. Isso é o que nos une. Bjinho
Um texto diferente do que costumas escrever mas que nos prende e nos enche de perguntas. Gosto. Muito. **
Caro(a)s Bloggers,
A NEGRA TINTA EDITORIAL tem o grato prazer de lançar a obra “CÂMARA ESCURA (revelação), do poeta Joaquim Amândio Santos, com prefácio de António Lobo Xavier.
Sendo esta obra mais um trabalho nascido de um escritor cuja carreira foi lançada na blogosfera, a exemplo das edições previstas e possíveis no futuro próximo desta editora, será importante contarmos com a honra da presença de bloggers nas diversas acções de lançamento da obra.
Nesse sentido, solicitávamos indicação de morada ou preferência por receber o convite por mail para negratinta@gmail.com, bem como qual dos eventos escolhem para nos honrar com a sua presença.
Lançamento e Apresentações:
31 de Maio Funchal
8 de Junho Penafiel
14 de Junho FNAC Norteshopping, Porto
28 de Junho FNAC Chiado, Lisboa
5 de Julho FNAC Coimbra
Aproveitámos ainda para solicitar que qualquer manuscrito que entendam colocar à consideração desta editora para possível publicação, seja enviado por este mail, ao meu cuidado, estando previsto editarmos até 4 obras, nascidas na blogosfera, até Março de 2008.
Saudações Literárias,
Nélia Maria Pereira
Edições e Comunicação
NEGRA TINTA EDITORIAL
Arrepiante, Maria. A lembrar os contos do seu querido Alan Poe...
pode, perfeitamemte, ser um guião para uma curta-metragem. Já pensou nisso?
Um beijo.
Muito interessante, a tripartição de um texto por três momentos e personagens distintos, com a primeira parte a aguçar-nos a atenção; o segundo parágrafo numa mostra de incontestável mestria literária (muito bem descrita a reacção!) e o "grand finale" a surpreender-nos, lacinando a impressão fácil que levávamos até aí. Muito bom!!!
E é precisamente porque gosto de te ler, que te passei um TPC! Com amigos assim, não precisas de inimigos, bistesssssss??? ;-)))
Um abraço para o fim-de-semana!
(I mean, para ti, mas pelo fds).
Mas espera lá... (lol)
Se a senhorita da 2ª parte deixava cair as lágrimas no sítio anteriormente ocupado pelo fio... então, então...
Opa, então já me lixaste! :-P
(vá, explica-te:-)
Belo conto. Na segunda parte, a descrição da mulher está muito bem conseguida. E o final é excelente: é bom que não se diga tudo ao leitor.
Um beijo,
Manuel
Os teus pés são navegantes na espuma, o teu cabelo dança em descuidada ironia, suave viagem de ondulante onda em tua boca, duas sílabas sopradas em mágica melodia…
Bom domingo
Doce beijo
* Eu disse "tripartição por três"??? Ehehehe, as coisas que eu digo! ;-)
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