Hoje tive que voltar a Kyoto. Um desassossego, uma saudade, uma vontade incontrolável de olhar e ver, contemplar, até conseguir acalmar o fogo que me queimava o peito na obssessiva necessidade de tentar que a memória reconstruísse, no presente, o que foi real no passado. Nada se repete e as fotografias podem não conseguir mais do que servir de repositório de memórias. Quem dera entrar nelas, conseguir recuar quinze anos no tempo, e regressar, por horas, minutos, segundos que fosse, ao lago do Templo Dourado. A imaginação, apoiada na memória preservada pelas fotografias, quase que consegue. Talvez chegue a conseguir, se a capacidade de concentração for elevada ao ponto de o espírito se deixar transportar, através da meditação, para o local desejado.
Hoje estive lá. Voltei a passear pelos Jardins de Sayonara, deixei-me enlear nos ramos das cerejeiras.
Andei em bicos de pés nos corredores do Castelo do Shogun, tentando não accionar os milhares de sininhos que, por debaixo das compridas tábuas de madeira, reagem ao menor movimento de quem as pisa.
Visitei um templo xintoísta e fiquei a observar, na minha total ignorância da sua Fé, as centenas de jovens que ali oravam, em silêncio.
Acabei por conseguir ficar uma eternidade em frente ao Templo Dourado, a reler o livro de Mishima. Vi o jovem monge em toda a sua dimensão de ser humano considerado "esquisito", porque diferente dos outros, alvo de chacota, de desprezo, porque gaguejava, porque era tímido e porque a paixão que dele se apoderava perante o fascínio do que considerava maravilhoso, místico, sobrenatural, o fazia adoptar comportamentos fora do comum. Senti o seu amor desmedido pela beleza do local, percebi (julguei entender) a loucura que o tinha levado a incendiar o templo, objecto maior dos seus afectos, entidade metafísica perturbadora do seu equilíbrio emocional. E dei Graças pelo facto de o mesmo ter sido reconstruído e eu ali estar, a admirá-lo, como se nunca tal tragédia por ali tivesse passado.
29 comentários:
Querida Amiga Maria Carvalhosa,
Bela descrição desses locais encantados e encantadores.
Deles se desprende a maravilhosa serenidade das coisas que SÃO, simplesmente, sem quiasquer outros atributos.
A Harmonia, entre todas as coisas, a água, as flores e toda a vegetação, os frutos, as cores e até o ar parece sereno, enquadra-se perfeitamente na paisagem e na descrição que fazes.
Muitos parabéns
Um grande abraço
José António
Nóa os humanos, no nosso deambular pela via, procuramos sempre a serenidade e a harmonia na nossa vida.
.... e isso encontra-se aqui, no teu blog.
Abç
F.
ai... só consigo dizer... que inveja!!! ehehhehe
bom dia!
Nunca estive no Japão. O mais perto foi numa casa em Lourenço Marques, Moçambique. Era uma família japonesa (avó paterna, pai, mãe e uma jovem) que conheci quando por lá passei. Aprendi coisas que perduraram sobre o tempo(a propósito da guerra, lembraram-me uma citação de Buda 'Uma injustiça feita a um só homem atinge toda a humanidade' que, nas circunstâncias, foi pedra de toque para que, quando me foi possível, ter lido o que pude sobre as coisas do espírito vistas por esse olhar de tão longe...)
Gostava de lá ir: pelos caminho dos deuses; há sempre (mais) horizontes para descobrir!
Daí que não tenha feito qualquer esforço para entender esta necessidade de juntar a memória à distância do presente...
Abraço!
p.s. - mas, confesso, fiquei intrigado!...
Quem diz que nenhum sonho se repete?... Um beijo.
Memórias que fortalecem o presente.
Beijinho
Olá, belos lugares... acabei de colocar o seu blog no Sal como blog destaque.
Fique bem...
Deixas aqui um testemunho lindíssimo sobre a passagem por um lugar que é encantador. E para quem nunca passou para lá do centro da Europa, o fascínio aumenta. E tanto que eu queria passar por jardins assim, pelo templo... e por tudo mais diferente que não é visual e se deve sentir com uma grande intensidade.
Parte da beleza das memórias é poder transmitir alguma da beleza que se arrastará sempre em tais recordações.
Bom fim-de-semana.
Que bom, minha Amiga, poder visitar coisas tão belas. Eu, agora, já a idade e a saúde não me permitem viajar assim
Que gurde tais lembranças por muito trepo.
Obrigado pekla visita e comentário no meu blogue
Abraço
lugar(es) inesquecíveis, da terra dos oito milhões de deuses, de onde o milenar o avant-garde se encontram. Como se alados fossem :)
beijos, Maria
Querida Maria,
Quando comecei a ler o post imaginei que me estarias a conduzir a uma abordagem do "Protocolo de Kyoto". Não foi, mas na verdade, até poderia. O que nos revelas é um mundo limpo, puro, algo naif - uma viagem pela tua adolescência, na adolescência dos sentidos.
Gostei muito. Mesmo muito.
Um abraço fraterno
Mel
www.noitedemel.blogs.sapo.pt
E eu fiquei cheia de vontade de ir a Kyoto. Trouxeste-me esse mundo de encanto, nas palavras e nas fotos. Obrigada. **
Maria,
O teu texto, e as imagens, deixaram-me entusiasmada com a ideia de ir a Kyoto. É verdade que não se vai lá com a mesma facilidade com que se chega a Salamanca (nem com o mesmo dinheiro... ;)) mas, quem sabe? Para já, ficou apontado como um dos meus destinos "a não perder"... quando será, não sei!
Gostei muito. Obrigada pela viagem que fiz contigo e pela vontade que me ficou de lá ir MESMO.
Um beijo.
Locais encantadores, carregados de páginas de História, mas que souberam acompanhar o evoluir dos tempos sem perderem identidade...
Um abraço!
Quinze anos é tanto tempo...
Um post cheio de memórias, e de pedacinhos de história...
Beijinhos, Maria
...E eu fiquei deslumbrado com a viajem que fiz pelos teus olhos...
Doce beijo
Gostei muito desta viagem. Uma viagem que me deixou leve por dentro.
Adorável Maria
As fotografias são belas e revelam a beleza do local elevada ao expoente da monstruosidade. Porque a beleza nelas entrevista releva do monstruoso, de algo inefável que está para além da compreensão da mente solar mediterrânica, mas que a excita em termos de curiosidade, afoitamento e intriga. As formas graciosas da flora, a transparência omnipresente da água, a leveza dos materiais de construção, os jogos de côr e luminescência, o mistério das sombras e dos reflexos, a beleza discreta e quase apagada do céu, tudo contribui para uma atmosfera de paz, equilíbrio, harmonia. Uma réplica real do Jardim Original, do Éden adâmico.
Mas o post não é de imagens, é de viagens, é de memórias, é de reconstruções. E a memória, como bem o disseste, é sempre uma questão de "quase que consegue". As palavras servem para isso, para quasificar" o passado. O passado é um lugar de onde fomos expulsos - o Paraíso Perdido - e aonde não podemos regressar. A palavra tem o condão de permitir dizer "Hoje estive lá", com toda a segurança de quem consegue, para demonstrar o enunciado, garantir: "voltei a passear", "andei em bicos de pés", "visitei um templo".
Para esta ousadia, para o descaramento de regressar ao lugar do interdito, é instrumental a releitura do livro (de Mishima). Contar uma estória no seio da viagem: ensimesmamento uterino, exposição do exterior (um monje tosco) no recolhimento da meditação. Amor consumido em fogo.
"Depois vi-me lá, a deixar-me fotografar" com os olhos projectados a 15 anos de distância. A olhar para este humilde e anónimo leitor (o Zé), sabendo-se vista e desejada por olhos ávidos de voyeur ansiosos por se satisfazerem de vivências e memórias alheias.
Hoje tive que voltar a Kyoto (sabendo que nunca lá estive) à boleia do desassossego da Maria.
Obrigada, Maria.
Um beijinho e continua.
Rui
Que bom que tivesses tido esta vontade e que a serenidade te tenha visitado, desta vez. Assim chamamos pela beleza, fugindo ao agreste ou bisonho. Oriente, ah...o Oriente é uma devoção, tentação minha. Acho que já lá não irei mas aconselho todos os que "tenham a ideia" a concretizá-la...milénios de história vos esperam na outra face do Mundo!
Obrigada Maria. É bom, como entre amigas, que nos sentamos aqui e falamos de memórias e sítios sagrados pelos nossos olhos. E vou finalmente hoje dizer "da batata", saborosa, de ler e tresler. Bjinho
Olá Maria,
Foi pouco depois de teres vindo do Japão que te conheci. Já lá vão quinze anos? Estavas ainda a viver a euforia de ter descoberto que afinal o Japão não era só Tokyo e Osaka (que detestaste, tanto quanto me lembro) e falavas, frequentemente, em dois escritores japoneses que tinhas descoberto - em nada semelhantes - mas por cujas escritas te tinhas apaixonado: Yukio Mishima, pois claro, com os seus "O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar", "O Templo do Pavilhão Dourado" e "Contos de Adoração", era assim? Comprei todos, na versão inglesa, assim que os encontrei;
Matsuo Bashô, era o outro, o pai do "haiku". Um livro fininho com gravuras lindas e todos os seus poemas. Chamava-se "O gosto solitário do Orvalho" (consegui arranjar a versão portuguesa algum tempo depois).
É curioso como ainda hoje consegues transmitir esse "estado de graça" em que vieste depois de teres sentido o que costumavas designar por "o espírito de Kyoto".
Eras um encanto, na altura. Continuas a sê-lo, está descansada!
Beijos com muitas saudades.
Ainda bem que voltaste. E que nos levaste contigo.
Obrigado.
Passados 15 anos ainda te lembras de tudo como se fosse ontem...
Tens uma memória prodigiosa.
Mas o importante não são esses aspectos, mas o facto da tua escrita ser muito agradável.
Escreves muito bem, parabéns.
Beijinhos.
querida maria,
a serenidade das imagens transmite-se a quem as observa. é bom regressar a lugares que nos marcaram tanto, observá-los com o olhar que o tempo, para quem o sabe viver, tornou diferente, mais rico por tudo o que soube guardar, mais atento, porque mais exigente.
mishima, claro. e bashô. vamos imaginar que há quinze anos, talvez, enquanto tu deambulavas pelo templo de mishima, eu lia com espanto e avidez "a casa das belas adormecidas", de yasunari kawabata. se ainda não conheces, coisa que duvido, lê-o e empreende uma nova viagem.
quanto ao comentário que deixaste sobre a minha ausência da blogosfera: não tem sido bem assim. se tens contador de visitas, podes verificar que, durante as últimas semanas, visitei várias vezes o teu blog. é o prolongamento do meu passeio matinal, este outro passeio pelos poucos blogs que visito. não tenho é deixado comentários. projectos entre mãos, a concretizar com urgência, a mente demasiado ocupada com o que há a fazer no dia que começa, tiram-me disponibilidade para comentar. mas venho ler-te, sim.
um abraço grande
aquilária
Obrrigado, Amiga, pela visita e comentário. Sempre amáveis e generodos os teus comentários. beijinho
Bonitas recordações registadas na memória,que bom recordar...
Bjs Zita
" A Paixão é meu destino, meu final e meu começo"
Maria Teresa Horta
Beijinhos embrulhados em abraços
As memórias devemos deixá-las intactas. Apenas passear por elas, devagar, para que quase não sintam a nossa presença.
Voltar aos locais de ontem é sempre uma desilusão.
Beijos. GOstei muito de te ler.
Memória tão encantada, essa...
É com um prazer dos diabos que tento apanhar os fiapos que dela vais largando em francas letras.
Essa imagem do Lago do Templo Dourado comove-me sem mais quês.
E o resto... O resto é tudo...
O que se não vê, o que se não sabe, o que deixas em aberto nas linhas escritas, porque mora por dentro da alma que alimenta a pena e, certamente, também a contém.
Memória tão encantada!...
Respeitosamente, e com aquele abraço,
Eu :-)
Ah, e também gostei de ver essa foto (boa perna, miúda!;-)... Lembrei-me do anúncio do "mudásti!", ehehehe ;-)))
Esse local é mágico
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