quinta-feira, maio 26, 2016

ABANDONO



No dia em que me deixaste.
Sim, no dia em que disseste que ias deixar-me, em que assumiste que ias viver um novo amor, que ias trocar a nossa vida já sem graça por outra, resplandecente de paixão e beleza, pensei que podia morrer.
Quando saíste com as malas e bateste com a porta atrás de ti, senti que o meu mundo tinha desabado, irremediavelmente e para sempre. Fiquei sentada no último degrau da escada (o mais próximo da porta que tinha acabado de se fechar sobre os últimos anos da minha vida) durante horas, talvez mesmo dias, não sei.
A dor que me apertava o peito era tão forte, que cheguei a imaginar que, naquele mesmo sítio, sozinha, ia sofrer um enfarte, e para ali ficaria fria, sem vida, até que alguém notasse a minha ausência e decidisse saber de mim.
Não chorei, não gritei, não me manifestei de alguma forma audível. Penso que, a dada altura, tentei enroscar-me, ficando quase na posição fetal, sobre o mármore gelado da escada.
Não sei quanto tempo depois, o telefone tocou e o som funcionou como o de um despertador. Pus-me de pé, aconcheguei o robe sobre o pijama e, num gesto maquinal, agarrei nas chaves e deixei-as escorregar para dentro dum bolso. De seguida, saí para a rua, em chinelos de quarto, deambulando como um fantasma. Desconheço se alguém me viu, mas estou certa de que ninguém me interpelou, com o ar de louca, ou de sem-abrigo, que devia ostentar.
No meu desvario, dirigi-me para o portinho do meio, onde me deparei com um pequeno barco abandonado, degradado pela passagem do tempo, pelas marés, pelo sol e pela chuva, que parecia aguardar-me, para me acolher como um berço a um bebé.
Entrei nele e deitei-me ao comprido, assim ficando escondida de algum olhar curioso. O dia estava cinzento e triste - pareceu-me, mas não havia vento e a temperatura podia até ser considerada agradável.
Devo ter adormecido. Mais uma vez, não sei por quanto tempo, pois esse tinha-se tornado um conceito sem valor para mim.
Acredito que tenha sonhado, porque julguei que ia contigo numa embarcação maior e confortável, rumo às Berlengas. Íamos abraçados e tu beijavas-me, com ternura, enquanto me sussurravas palavras meigas. Eu correspondia-te, despreocupada e alegre, ansiosa por desembarcar na ilha que tanto amávamos e onde, sempre, tínhamos vivido momentos de felicidade intensa.
De repente, senti-me salpicar por gotas de água que, com a mente ainda entorpecida pelo sonho que me tinha embalado, julgava salgadas. Soergui-me, no pequeno barco abandonado do portinho do meio, e, surpreendida, constatei que estava completamente encharcada, não por causa de pequenas gotas salgadas, mas por autênticos pingos grossos de chuva. Daqueles que atravessam a roupa e a pele e nos ensopam até aos ossos.
"Que disparate!", disse em voz alta, como que para me ouvir melhor "Ainda apanho para aqui alguma pneumonia, vou parar ao Hospital e depois morro para lá. O melhor é ir já depressa para casa e meter-me debaixo do chuveiro para um duche bem quente. Depois, tomo uma aspirina e enfio-me na cama. Amanhã, hei-de acordar fresca como uma alface e vou trabalhar, como de costume."
No caminho de regresso, indiferente ao aspecto da minha figura grotesca, sentia-me leve e descontraída, quase aliviada, como se tivesse acordado de um pesadelo.
Foi a partir daí que passei a referir-me, sem mágoa, àquele episódio como "o dia em que me deixaste".
Maria Carvalhosa (inédito)
Foto: "Abandonado", do blogue http://olharesdemaresia.blogspot.pt, de António Rodrigues

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