sexta-feira, janeiro 19, 2018

Sou rio (sorrio)


Foto de António Rodrigues: "Nos teus olhos, sou rio"

Sou rio.

Broto da escarpa rochosa:
ténue fiozinho de água
deslizando pela encosta,
molhando fragas e arbustos
até alcançar o vale
na procura de um riacho.

Irmãos-de-água fundidos
corremos alegremente,
na inocência da infância,
cantando e rumorejando
por sobre as pedras do leito
que nos indica o caminho.

Engrossei o meu caudal,
já tenho curvas e praias.
Rápidos alucinantes,
num rodopio de volúpia,
precipitam-me na queda
em vertiginosa cascata,
numa lagoa serena.

É dali que parto, eufórico,
enriquecido pelas águas
de outros rios solitários
que comigo se reúnem
e num só se consolidam:
imenso, forte, profundo.

Em desassossego e exaltação
o mar agora procuro
para nele, em largo manto,
consumar o meu destino:
confundir os nossos fluidos,
acertar nossas marés.

Sou rio.


(De costas voltadas
para a porta
pressinto a tua chegada:
aproximação doce e suave
que me faz estremecer
em prazer antecipado.

Enlaças-me pela cintura,
teu rosto encostado ao meu cabelo.
Um murmúrio terno e quente
me roça ao de leve o ouvido.
Lábios macios e ardentes
beijam-me a nuca, ansiosa.

Rio que sou, a ti me entrego:
Estuário vigoroso, excessivo, apressado
que o teu mar acolhe em festa.

Sorrio.)



Maria Carvalhosa
(originalmente publicado neste blogue em 21 de Maio de 2008)

sexta-feira, outubro 06, 2017

Diz-se livre como um pássaro!



Bateu com a porta ao sair de casa. Com a cabeça a rebentar de pensamentos negativos, que tentava afastar sem resultado, dirigiu-se para a garagem, para se meter no carro e conduzir sem destino.
Poderia mesmo espetar-se numa árvore, ou despenhar-se numa ravina.
Pouco lhe importava, até que bateu com os olhos na sua asa delta, há tanto tempo esquecida e sem préstimo.
Sorriu e deu consigo a pensar que, afinal, ainda algo podia fazer sentido na sua vida. 
Uma hora depois, voando sobre a Baía que conhecia como os dedos das suas mãos, gritou a plenos pulmões, imbuído de um sentimento entre o eufórico e o tranquilo, talvez mesmo feliz:
" Sou livre como um pássaro!"

domingo, junho 11, 2017

Um rio de sentidos



Num qualquer Domingo soalheiro de um agradável mês de Junho, num certo ano do início do Século XXI, na encantadora cidade de Lisboa, em Portugal, na velha Europa: 
"Vamos dar um passeio à beira-rio, Margarida?"
"Boa ideia, Henrique. Vamos no meu ou no teu?"
"Haha. Nada disso. Cada um leva a sua."
"Entendi-te. É sempre a descer. O pior vai ser no regresso. Mas bora lá. Hoje sinto-me com energia. E a brisa do rio dá uma ajuda, se for preciso."
Como não era possível irem de mãos dadas, e a premência do contacto físico, que a sua idade e estado de enamoramento assim o exigiam, de vinte em vinte metros paravam as bicicletas e uniam as bocas, num longo, doce e molhado beijo, ao mesmo tempo que se tocavam, apertando o braço um do outro.
Ao fim de, sensivelmente, dez paragens, forçadas pela tal urgência de partilha corporal, Henrique atreveu-se "Quando chegarmos ao cais das colunas, largamos as bikes e vamos estender-nos na rampa, com as ondinhas do rio a fazerem-nos cócegas nos pés. Damos um abraço tão apertado que ficamos transformados num só. E fazemos amor, ali mesmo, sem que ninguém dê por isso. Parece-te bem?"
"Lindamente" respondeu Margarida com um risinho nervoso. E, logo de seguida, já com três pedaladas e dois metros de avanço "O último a chegar paga o gelado na "Suíça" ao fim da tarde!"


Foto de António Rodrigues, no blogue "Olhares de Maresia"

sexta-feira, abril 07, 2017

NUNCA É TARDE

Já não poderia ser considerado propriamente jovem, quando tomou a decisão de mudar, de modo radical, o seu estilo de vida. 

A verdade é que tinha estado, durante demasiado tempo, amarrado a convenções e preconceitos e agora, qual Bela Adormecida acabada de acordar de um sono de cem anos, descobria todo um novo mundo, que se abria perante  os seus olhos desmesuradamente abertos, ávidos de novidade, de aventura, de liberdade.

Começou por despedir-se do emprego onde, anos a fio, com um zelo inexplicável, tinha deixado escapar a fogosidade e a irreverência próprias da tenra idade. De seguida, desfez-se da casa, do carro topo de gama e de quase todos os outros bens materiais que o prendiam a lugares, a estatutos, a círculos de pessoas por quem já não sentia qualquer tipo de afinidade.

Comprou, então, uma velha carrinha, onde coubessem os poucos pertences que lhe restavam, mas que tivesse espaço suficiente para algumas pranchas de surf. Pintou, ele próprio, a sua nova casa com as cores de que sempre gostara, e nela fez desenhos quase infantis, com os quais nunca tinha, sequer, ousado sonhar.

Experimentou um sentimento desconhecido, doce e agradável quando, após ter comprado um chapéu de palha, de abas largas, se sentou ao volante do recém-adquirido, mas já amado, "pão de forma".

Deixou para trás a cidade e fez-se à estrada, em direcção à costa, sua futura morada, sem paradeiro certo nem permanente. Ao encetar a viagem, sorriu para o passageiro a seu lado, igualmente satisfeito e ansioso. Acariciando-lhe o sedoso pelo castanho, apenas murmurou em tom carinhoso, mas determinado "Vamos lá, que se faz tarde!"


Foto "Estilo de Vida" de António Rodrigues


domingo, abril 02, 2017

segunda-feira, outubro 24, 2016

Histórias do meu Tonho




Tempestade. Forte sopra o vento sobre a vila piscatória, grandes ondas, mar agitado. Neptuno parece zangado.

Em terra, pescadores observam a branca espuma quebrando o negro da noite. Espera-se. Aguarda-se por melhoria do tempo, tempo esse que escasseia para uma faina normal.
"Porque não vamos? Ou vamos para o mar, ou vamos para casa". Ouve-se em murmúrios. Ao vento e ao frio,  pescadores anseiam por ordens dos seus mestres.
Meia-noite. Ouvem-se as doze badaladas do velho sino da igreja. Um novo dia começa. A ansiedade termina: "Regressamos a casa. Ordens para as nove da manhã!". Debandada geral rumo ao calor do lar, ao porto de abrigo, que são as suas famílias.

Joaquim inicia o seu habitual trajecto em direcção ao velho bairro onde habita. Fracas luzes iluminam os seus passos. O vento parece ajudá-lo a encurtar a distância a percorrer. Ei-lo chegado à escada de sua casa, com a cesta do farnel numa mão e já com a chave na outra. Basta-lhe subir ao primeiro andar para chegar a bom porto.
Já à porta, Joaquim insere a chave na fechadura e roda-a, num misto de exaustão e alegria.

Abre a porta e detém-se, imobilizado. A sala encontra-se iluminada àquela hora tardia. Encosta-se, para não cair, enquanto das mãos lhe escorrega a cesta. No seu típico gaguejar, diz "À... à... à c'anzana, Maria... à c'anzana, e eu nada!" Tinha acabado de apanhar a mulher em pleno acto de adultério, com um gigante, musculado, de calças arreadas, e agora imóvel, homem de raça negra.

Maria, sem sair da caricata posição em que tinha sido encontrada,  questiona o marido, em tom furioso,  virando o pescoço para trás e lançando-lhe um olhar de ódio "O que estás a fazer aqui, desgraçado? Não foste ao mar porquê, pilante?"

Joaquim responde, ainda encostado à porta, com os olhos fixos na inusitada imagem à sua frente "O mestre mandou para casa, e eu vim."

"E não sabias ficar no armazém, seu atrasado? Tinhas que vir para casa?"

"Queria ter sexo contigo, Maria. Mas acho que cheguei tarde!"

"Tu? Ah pá, achas que se valesses alguma coisa eu precisava de ajuda?"

Aqui começa a discussão. Maria opta por uma posição mais consentânea com o confronto que aí vem. Exalta-se e, erguendo-se, cresce para o Joaquim e maltrata-o verbalmente.
Os vizinhos, que entretanto se apercebem da gritaria, acercam-se das escadas. A voz de Maria ecoa por todo o bairro. Joaquim, ao aperceber-se da  presença da vizinhança, atenta ao que se passa naquele primeiro andar, riposta aos berros, chamando puta e galdéria à sua mulher. O gigante negro continua imóvel, como se de uma estátua de ébano se tratasse. Em baixo, os vizinhos vão seguindo alegremente o degradante espectáculo e, entre alhos e bugalhos, Maria esbofeteia Joaquim, para gáudio dos assistentes.

O nível da discussão aumenta. Maria agride em crescendo, verbal e fisicamente o seu homem. Joaquim tenta defender-se, limitando-se a balbuciar meias-palavras, devido à gaguez de que padece, acrescida de profundo nervosismo perante a situação.
A multidão, instalada na rua, ri a bom rir. Joaquim, implacavelmente ferido no seu orgulho de macho, consegue finalmente sobrepor a sua voz ao ruído da discussão e articular uma frase completa: "Tu és uma puta!". Maria, ofendida, aplica um forte soco no rosto do homem, que o desequilibra e faz com que desça as escadas, contando os vinte degraus, um a um, com os costados.

Sentado no chão, completamente dorido e vendo os vizinhos a rir, Joaquim tenta, a custo, levantar-se. Embora ferido, e emocionalmente destroçado, consegue erguer-se e, olhando para o cimo da escada, onde Maria, com as mãos na cintura, o contempla com ar desafiante, diz em voz bem alta, miraculosamente sem gaguejar: "Isto não acaba aqui. Amanhã levas mais, ouviste?". E parte, sozinho, a cambalear, para se embrenhar mais à frente na noite escura.

Amanhece. Na velha ribeira algo de novo parece passar-se. Ouvem-se, aqui e ali, murmúrios e risadas, saídos dos pequenos aglomerados de pescadores e varinas. Há festa, sem dela haver sinais evidentes. A azáfama do vaivém das chatas, levando e trazendo os pescadores, faz parte do cenário de um dia normal naquele porto de pesca. Apenas as sonoras gargalhadas soltas pelas potentes vozes das varinas intrigam os transeuntes que por ali passam.

Joaquim cumpre as ordens. Às 9 horas da manhã chega à ribeira e, em vez do habitual bom dia, é cumprimentado pelos camaradas com a inesperada frase: "À c'anzana, Esquim, à c'anzana... e tu, nada!",  frase esta que é repetida até ao limite da sua paciência. Triste, Joaquim baixa a cabeça (enquanto mentes maldosas pensam, embora não o digam que, literalmente, baixa os cornos) e continua a andar, ferido por dentro, até alcançar uma pequena lancha, onde se senta, na mais profunda solidão.

Lança o olhar para a multidão que, atentamente, o observa e vê colegas, amigos e pessoas anónimas, com ar de diversão. É ele o motivo da chacota de toda aquela gente e, no seu canto, não pára de ouvir a frase que o tortura "À c'anzana, Maria, à c'anzana... e eu nada!".

De repente, como que numa visão, Maria surge de entre o amontoado de gente, sorridente e com ar vitorioso, elevada à categoria de heroína por um acto de adultério. Joaquim não consegue conter a ira que dele se apodera perante tal contra-senso. Furioso,  ergue-se e pega num pequeno remo existente na lancha onde se tinha sentado. É com o corpo todo a tremer que se dirige à mulher, de forma agressiva, empunhando bem alto o remo e gritando, num tom suficientemente audível para chamar sobre si a atenção da turba agitada, que recua em conjunto.

Maria fica isolada num frente a frente com o seu homem. Faz-se silêncio na ribeira. A expectativa aumenta. Maria, imóvel, apenas olha para ele. O espaço entre ambos diminui.

A tensão cresce no recinto, quando Joaquim solta uma frase, erguendo mais alto o remo "Ah, puta de merda! Agora é que vais ver!"

Instala-se um silêncio de morte na ribeira. Até as gaivotas, que por ali esvoaçam, deixam de grasnar, como que em cumplicidade. O mar bate no molhe sem se fazer ouvir, e as pessoas acotovelam-se, inertes,  suspensas do desenrolar da cena entre o casal.

O remo começa a descer ao encontro do corpo de Maria. Paira no ar um augúrio de tragédia. Subitamente, o remo é travado na sua descida.  Um par de mãos  se junta às de Joaquim. São as mãos de uma varina, são as mãos de Maria que, conseguindo interceptar a trajectória do remo em direcção ao seu corpo, com um forte puxão o arranca das mãos trémulas de Joaquim.

Vira-se o feitiço contra o feiticeiro.  Agora, é Maria quem segura o remo e, com ele, desata a bater desalmadamente no marido, num sobe e desce estonteante sobre o corpo de um Joaquim cada vez mais magoado, ferido, humilhado.

O povo, a tudo assistindo entre o impávido e o incrédulo, não reage, pois entre marido e mulher ninguém deve meter a colher, assim diz o ditado, que aqui impera como lei.

Joaquim quebra perante a violência da mulher. Cada pancada daquele remo é mais uma tonelada, de peso e de dor, sobre o seu corpo cada vez mais frágil. Acaba por cair, no chão da calçada. Ali jaz, perdendo os sentidos.

Maria lança-lhe um olhar de desprezo, cospe para o lado e atira o remo para longe. Tarefa cumprida, vira-lhe as costas e afasta-se, sem uma palavra.

A ausência de qualquer som parece intensificar-se nos momentos que se seguem. Todos os olhos se fixam no corpo inanimado. Uma voz, vinda do nada, quebra o silêncio a medo "o Esquim tá morto!".

Mas não. Sobrepondo-se a toda a dor, a muito custo, Joaquim consegue abrir os olhos e observa a multidão que, insensível e imperturbada, assiste à sua tragédia. Apenas uma suave brisa corta o silêncio. Estranha manhã aquela!

Sentindo o amargo sabor do orgulho ferido, num apelo ao que resta das suas forças,  Joaquim senta-se no chão frio, ergue a cabeça e procura Maria com o olhar, que se detém ao encontrá-la. O suspense aumenta entre a assistência. Nunca aquela ruidosa ribeira conhecera tal quietude.

Joaquim levanta um braço, dorido e oscilante, em direcção à mulher. Aponta-lhe um dedo e, quebrando todo o mutismo, solta bem alto as palavras:

 "Maria, não te esqueças... e lá em casa levas mais!"


FIM

Foto: Tempestade, de António Rodrigues

sábado, maio 28, 2016

O Planeta Verde



Este texto foi escrito, e publicado na minha página do Facebook, no dia 13 de Janeiro de 2014. Na altura não o partilhei neste espaço porque, por razões que eu própria desconheço, tinha este meu blogue inactivo. Senti, agora, chegado o momento de o adicionar a todos os outros textos que aqui tenho divulgado.

O PLANETA VERDE
Meu querido Papá,
Hoje é o 7º dia após o seu falecimento e, talvez também por isso, esta noite lembrei-me de mais uma das muitas coisas que ao longo das nossas vidas tivemos em comum. Sim, ambos gostámos sempre muito de dormir e isso talvez porque, para ambos, dormir significa sonhar. E nós sempre tivemos a ventura de ter sonhos lindos, maravilhosos, fantásticos e, em sequência, sempre nos deu imenso prazer partilhá-los. Claro que também sonhamos acordados mas, neste caso, reporto-me especificamente aos sonhos ocorridos durante o sono.
Lembro-me, claramente, da primeira vez em que nos falou de um sonho fabuloso, talvez o mais extraordinário que alguma vez havia tido. Eu e os meus irmãos, ainda crianças, ouvíamos, extasiados, à volta da mesa do almoço, os prodígios, até ali inimagináveis, que o Papá nos contava sobre um incrível Planeta Verde, repleto de formosuras e encantos só comparáveis, para nós, aos dos contos de fadas.
Fui sabendo, no decurso do tempo, que as suas visitas nocturnas a este planeta se tornaram recorrentes, e que este era um dos locais preferidos de devaneio do seu inconsciente, enquanto dormia.
De tal forma se tornou um hábito, que fui crescendo com a nítida certeza de que, pelo menos para si, e para mim, por simpatia, este planeta existia mesmo. Confesso que, sem qualquer ponta de ciúme, cheguei a imaginar que nele tinha constituído uma segunda família, em quase tudo semelhante à nossa, com a diferença de que mais feliz, porque lá, no Planeta Verde, seria tudo mais perfeito: sem poluição, sem guerras, sem desigualdades sociais, sem mesquinhez, porque um planeta exemplar só poderia ser assim. Sei que o Papá, por mais de uma vez, chegou a dizer-nos "Gostava tanto de vos levar lá!".
Mais tarde, após ter lido "A Utopia", de Thomas More, recordo-me de ter pensado que o seu Planeta Verde conseguia ser ainda mais irrepreensível do que a ilha do escritor inglês, porquanto nessa existia escravatura, o que não sucedia no seu lugar de eleição.
Hoje, exactamente uma semana após a sua partida, gosto de pensar que, por fim, conseguiu viajar irreversivelmente para o seu Planeta Verde, e que não precisa mais de acordar como um comum terráqueo, neste Planeta a que, orgulhosamente, nos habituámos a chamar azul, apesar de tanto o maltratarmos. Sinto, igualmente, uma alegria ímpar quando penso que, um dia, quem sabe, poderá ser que me junte a si nesse planeta de sonho, quando o sono final sobre mim também se abater e a nossa cumplicidade onírica, enfim, se cumprir.
Aproveite bem, enquanto eu não chegar, meu querido Pai.
Depois, quando eu também já for habitante desse lugar de belezas únicas, desfrutá-lo-emos juntos. Que contentamento há-de ser o nosso, tenho a certeza!
Até lá... com muito, muito, muito Amor!
Fami
P.S: Seja quanto tempo for, vai passar num instante, face à eternidade que teremos, para nele podermos viver intensamente a felicidade!

quinta-feira, maio 26, 2016

ABANDONO



No dia em que me deixaste.
Sim, no dia em que disseste que ias deixar-me, em que assumiste que ias viver um novo amor, que ias trocar a nossa vida já sem graça por outra, resplandecente de paixão e beleza, pensei que podia morrer.
Quando saíste com as malas e bateste com a porta atrás de ti, senti que o meu mundo tinha desabado, irremediavelmente e para sempre. Fiquei sentada no último degrau da escada (o mais próximo da porta que tinha acabado de se fechar sobre os últimos anos da minha vida) durante horas, talvez mesmo dias, não sei.
A dor que me apertava o peito era tão forte, que cheguei a imaginar que, naquele mesmo sítio, sozinha, ia sofrer um enfarte, e para ali ficaria fria, sem vida, até que alguém notasse a minha ausência e decidisse saber de mim.
Não chorei, não gritei, não me manifestei de alguma forma audível. Penso que, a dada altura, tentei enroscar-me, ficando quase na posição fetal, sobre o mármore gelado da escada.
Não sei quanto tempo depois, o telefone tocou e o som funcionou como o de um despertador. Pus-me de pé, aconcheguei o robe sobre o pijama e, num gesto maquinal, agarrei nas chaves e deixei-as escorregar para dentro dum bolso. De seguida, saí para a rua, em chinelos de quarto, deambulando como um fantasma. Desconheço se alguém me viu, mas estou certa de que ninguém me interpelou, com o ar de louca, ou de sem-abrigo, que devia ostentar.
No meu desvario, dirigi-me para o portinho do meio, onde me deparei com um pequeno barco abandonado, degradado pela passagem do tempo, pelas marés, pelo sol e pela chuva, que parecia aguardar-me, para me acolher como um berço a um bebé.
Entrei nele e deitei-me ao comprido, assim ficando escondida de algum olhar curioso. O dia estava cinzento e triste - pareceu-me, mas não havia vento e a temperatura podia até ser considerada agradável.
Devo ter adormecido. Mais uma vez, não sei por quanto tempo, pois esse tinha-se tornado um conceito sem valor para mim.
Acredito que tenha sonhado, porque julguei que ia contigo numa embarcação maior e confortável, rumo às Berlengas. Íamos abraçados e tu beijavas-me, com ternura, enquanto me sussurravas palavras meigas. Eu correspondia-te, despreocupada e alegre, ansiosa por desembarcar na ilha que tanto amávamos e onde, sempre, tínhamos vivido momentos de felicidade intensa.
De repente, senti-me salpicar por gotas de água que, com a mente ainda entorpecida pelo sonho que me tinha embalado, julgava salgadas. Soergui-me, no pequeno barco abandonado do portinho do meio, e, surpreendida, constatei que estava completamente encharcada, não por causa de pequenas gotas salgadas, mas por autênticos pingos grossos de chuva. Daqueles que atravessam a roupa e a pele e nos ensopam até aos ossos.
"Que disparate!", disse em voz alta, como que para me ouvir melhor "Ainda apanho para aqui alguma pneumonia, vou parar ao Hospital e depois morro para lá. O melhor é ir já depressa para casa e meter-me debaixo do chuveiro para um duche bem quente. Depois, tomo uma aspirina e enfio-me na cama. Amanhã, hei-de acordar fresca como uma alface e vou trabalhar, como de costume."
No caminho de regresso, indiferente ao aspecto da minha figura grotesca, sentia-me leve e descontraída, quase aliviada, como se tivesse acordado de um pesadelo.
Foi a partir daí que passei a referir-me, sem mágoa, àquele episódio como "o dia em que me deixaste".
Maria Carvalhosa (inédito)
Foto: "Abandonado", do blogue http://olharesdemaresia.blogspot.pt, de António Rodrigues

segunda-feira, maio 23, 2016

DECISÃO


Depois de ter vagueado pela beira-mar durante um bom par de horas, sentou-se no pontão do Molhe Leste, à hora do crepúsculo. Um turbilhão de pensamentos povoava-lhe a cabeça, tornando-lhe impossível concentrar-se num único, que fizesse sentido e se apresentasse como a solução para o seu intrincado problema. Uma questão, em particular, a martirizava: "como iriam reagir os pais?" E logo de seguida surgia outra, igualmente premente: "e o curso, o curso ainda por acabar!?"
Simultaneamente, era-lhe difícil não pensar no Diogo e na inesperada reacção que ele tivera ao tomar conhecimento do assunto. Como era possível nunca se ter apercebido de quanto ele era insensível? Por que razão tinha sempre acreditado que a amava na mesma medida em que ela o fazia e que, juntos, conseguiriam fazer frente ao mundo, em qualquer situação? Tanta ingenuidade!
Não chorava. Não entendia porquê, mas as lágrimas não lhe afloravam aos olhos, que mantinha baixos, perdidos na contemplação do nada, que eram as suas pernas cruzadas sobre o cimento do molhe.
De súbito, precisou de olhar o sol, que começava a esconder-se para lá do mar, na linha do horizonte e, inusitadamente, ocorreu-lhe que estaria a nascer do outro lado do mundo, onde uma qualquer rapariga japonesa, com um nome muito diferente do seu, poderia estar a olhá-lo, naquele preciso momento, e a interrogar-se sobre questões em tudo idênticas às suas.
Sorriu timidamente perante o absurdo da ideia. E depois parou de sorrir. Impôs uma ordem lógica ao seu raciocínio, até aí errante, conseguindo, pela primeira vez naquela tarde, sentir-se confiante, sem receios e quase feliz.
Voltou a olhar para a vastidão do mar, num misto de desafio e cumplicidade para com aquela imensidão, sua única confidente.
Agora sim, estava segura. Havia ainda muitas respostas por dar, muitos caminhos por percorrer, mas de uma coisa tinha a certeza: queria aquele filho acima de tudo no mundo e nada, nem ninguém, com panóplias de argumentos e conselhos mais ou menos avisados, a iria fazer abdicar, sob que pretexto fosse, daquela decisão!
O sol, para a Ana, em Peniche, numa das praias mais ocidentais da Europa, não muito longe de Lisboa, tinha acabado de desaparecer por detrás da massa de água que a sua vista alcançava. Estaria a surgir, seguramente, em toda a sua plenitude, à jovem Natsuki, que o observava em Ichinomiya Chiba, numa das praias mais orientais da Ásia, não muito longe de Tóquio .
Levantou-se, contente por si e pela sua amiga imaginária, que só poderia ter tomado uma decisão igual à sua.
Enquanto caminhava de volta a casa, na semi-obscuridade do ocaso, sentiu que duas lágrimas doces lhe rolavam pelas faces.
Sorriu novamente, desta vez num sorriso aberto, erguendo a cabeça com alegria e determinação.
Maria Carvalhosa (inédito)
Foto: "Silhueta", do blogue http://olharesdemaresia.blogspot.pt, de António Rodrigues

sábado, janeiro 09, 2016

Começar de novo!



Recomeçar. Todos os dias. Não importa o quê nem porquê, há que começar de novo.

A propósito desta onda de revitalização de velhos blogues, esquecidos e abandonados, entregues à poeira do tempo, tenho assistido com alegria ao ressurgimento de alguns que, antes da supremacia das redes sociais sobre tudo o resto, fizeram as minhas delícias.

Começo por referir o que se passa aqui em casa, mesmo ao meu lado, com o fotoblogue Olhares de Maresia, do António, que, neste início de ano, tem sido alvo de intensa actividade. Depois, dou-me conta de que também o meu amigo Rui Fernandes decidiu ressuscitar  O Sítio do Tremontelo e, logo de seguida, que a minha amiga Maria manifesta vontade de voltar a dar mais atenção ao seu O Cheiro da Ilha.

Movida por uma imensa nostalgia, e vontade de rever velhos amigos, recomeço  a visitar os blogues das minhas queridas poetas Graça Pires, Ortografia do Olhar, e Licínia Quitério, O Sítio do Poema, sendo que estes sempre se mantiveram activos, ficando a inactividade toda da minha responsabilidade, já que, nos últimos anos, raramente os procurava. 

E eis-me também aqui, decidida a começar de novo. Veremos que continuidade terá e o que daqui sairá. Para já, não faço planos nem declarações de intenções. Limito-me a dar conhecimento deste facto aos meus amigos que, porventura, ainda possam tentar saber de mim por esta via, de quando em vez.
Até breve! ( assim o espero).


Video do Youtube - Começar de novo
Autor: Ivan Lins
Interpretação: Jane Monheit

quarta-feira, março 21, 2012

21 de MARÇO, DIA MUNDIAL DA POESIA

No Dia Mundial da Poesia: a minha sincera homenagem a alguns amigos pessoais, excelentes poetas, ainda pouco conhecidos e que, felizmente, se encontram vivos e de boa saúde!
A saber (por ordem alfabética):


Alberto Pereira
Graça Pires
José Luís Outono
Licínia Quitério
Mel de Carvalho


Também ao Mário Domingos que, para nossa mágoa, nos deixou no passado janeiro, apenas um mês volvido sobre a publicação do seu primeiro livro de poesia "O Despertar dos Verbos".


segunda-feira, março 19, 2012

19 DE MARÇO... E O PAI?



Era o primeiro Dia do Pai desde que o seu havia partido para sempre.
Na escola, há alguns dias que, sob orientações da professora, meninas e meninos tinham dado asas à sua criatividade e preparavam, com determinação e carinho, o presente que iria pintar um imenso sorriso no rosto do seu progenitor. 
Durante quase um dia inteiro, Duarte não conseguiu por mãos à obra, indeciso relativamente à posição a tomar perante a inexistência do pai vivo, mas igualmente incapaz de enfrentar, perante amigos e professora, a dura e cruel realidade da sua morte prematura, que nele havia deixado um estigma, uma cicatriz a ferro e fogo marcada.
Por fim, sem o entusiasmo radiante dos colegas, mas sem, por outro lado, dar mostras de contrariedade, o menino foi dando forma ao seu presente: numa cartolina vermelha tinha desenhado uma gravata. Depois, tinha-a recortado e, no suposto lugar do nó, tinha colado uma pequena moldura redonda, dentro da qual estava uma fotografia sua, recentemente tirada pelo fotógrafo da escola com esse mesmo propósito. Como remate, uma argolinha metálica permitia que pudesse ser pendurado num minúsculo prego, em qualquer parede.
Estava feito, portanto!
Chegado a casa, deu um apressado beijo no rosto da mãe e correu a refugiar-se no quarto, onde permaneceu num silêncio pouco habitual.
No quarto ao lado, a irmã estudava e, também ela particularmente taciturna nesse dia, secretamente entregue ao seu habitual sentimento de saudade, não deu mostras de ter notado que o irmãozinho mais novo tinha regressado da escola.
A mãe, atarefada com o jantar, não saiu da cozinha para tentar perceber a razão de tamanha urgência em passar despercebido.
Volvida uma meia hora, Duarte percorreu, pé ante pé, o corredor. Entrou na cozinha e, sem uma palavra, postou-se ao lado da mãe, que se encontrava perdida entre as folhas de couve e as lágrimas provocadas pela severa acidez de uma cebola, semidescascada.
Ao aperceber-se da sua silenciosa presença, a mãe olhou para Duarte. Viu o braço completamente estendido na sua direção e, na palma da mão, um embrulho com um laço.
Não percebeu imediatamente. Perguntou: “o que é isso?”.
Duarte encolheu os ombros, com um sorriso triste, e esticou ainda mais o braço, como que a dizer: “abre e não perguntes mais nada”.
A mãe secou as mãos, pegou no embrulho e abriu-o, intrigada. Ao ver o presente, deu graças por não estar a descascar uma cenoura, uma batata, ou mesmo um alho francês. Baixou-se e abraçou Duarte, murmurando “obrigada, querido filho, é lindo”. Fungou e limpou a face da criança, sorrindo, enquanto refilava “estas cebolas são mesmo agressivas. Da próxima, não trago das roxas”.
Deu a mão a Duarte e dirigiu-se ao quarto onde, na porta, uma pequena placa continuava a indicar “Quarto dos Pais”. Disse-lhe: “vamos já pendurar a tua fotografia. Estás tão bonito!". De seguida, chamou: "Mariana, anda ver o trabalho lindo que o mano trouxe."
Notou apenas para consigo que, desta vez, o presente não se tinha feito acompanhar do cartão que, invariavelmente, ostentava a frase: “Para o melhor Pai do Mundo”.


Imagem: web