Tempestade. Forte sopra o vento sobre a vila piscatória, grandes ondas, mar agitado. Neptuno parece zangado.
Em terra, pescadores observam a branca espuma quebrando o negro da noite. Espera-se. Aguarda-se por melhoria do tempo, tempo esse que escasseia para uma faina normal.
"Porque não vamos? Ou vamos para o mar, ou vamos para casa". Ouve-se em murmúrios. Ao vento e ao frio, pescadores anseiam por ordens dos seus mestres.
Meia-noite. Ouvem-se as doze badaladas do velho sino da igreja. Um novo dia começa. A ansiedade termina: "Regressamos a casa. Ordens para as nove da manhã!". Debandada geral rumo ao calor do lar, ao porto de abrigo, que são as suas famílias.
Joaquim inicia o seu habitual trajecto em direcção ao velho bairro onde habita. Fracas luzes iluminam os seus passos. O vento parece ajudá-lo a encurtar a distância a percorrer. Ei-lo chegado à escada de sua casa, com a cesta do farnel numa mão e já com a chave na outra. Basta-lhe subir ao primeiro andar para chegar a bom porto.
Já à porta, Joaquim insere a chave na fechadura e roda-a, num misto de exaustão e alegria.
Abre a porta e detém-se, imobilizado. A sala encontra-se iluminada àquela hora tardia. Encosta-se, para não cair, enquanto das mãos lhe escorrega a cesta. No seu típico gaguejar, diz "À... à... à c'anzana, Maria... à c'anzana, e eu nada!" Tinha acabado de apanhar a mulher em pleno acto de adultério, com um gigante, musculado, de calças arreadas, e agora imóvel, homem de raça negra.
Maria, sem sair da caricata posição em que tinha sido encontrada, questiona o marido, em tom furioso, virando o pescoço para trás e lançando-lhe um olhar de ódio "O que estás a fazer aqui, desgraçado? Não foste ao mar porquê, pilante?"
Joaquim responde, ainda encostado à porta, com os olhos fixos na inusitada imagem à sua frente "O mestre mandou para casa, e eu vim."
"E não sabias ficar no armazém, seu atrasado? Tinhas que vir para casa?"
"Queria ter sexo contigo, Maria. Mas acho que cheguei tarde!"
"Tu? Ah pá, achas que se valesses alguma coisa eu precisava de ajuda?"
Aqui começa a discussão. Maria opta por uma posição mais consentânea com o confronto que aí vem. Exalta-se e, erguendo-se, cresce para o Joaquim e maltrata-o verbalmente.
Os vizinhos, que entretanto se apercebem da gritaria, acercam-se das escadas. A voz de Maria ecoa por todo o bairro. Joaquim, ao aperceber-se da presença da vizinhança, atenta ao que se passa naquele primeiro andar, riposta aos berros, chamando puta e galdéria à sua mulher. O gigante negro continua imóvel, como se de uma estátua de ébano se tratasse. Em baixo, os vizinhos vão seguindo alegremente o degradante espectáculo e, entre alhos e bugalhos, Maria esbofeteia Joaquim, para gáudio dos assistentes.
O nível da discussão aumenta. Maria agride em crescendo, verbal e fisicamente o seu homem. Joaquim tenta defender-se, limitando-se a balbuciar meias-palavras, devido à gaguez de que padece, acrescida de profundo nervosismo perante a situação.
A multidão, instalada na rua, ri a bom rir. Joaquim, implacavelmente ferido no seu orgulho de macho, consegue finalmente sobrepor a sua voz ao ruído da discussão e articular uma frase completa: "Tu és uma puta!". Maria, ofendida, aplica um forte soco no rosto do homem, que o desequilibra e faz com que desça as escadas, contando os vinte degraus, um a um, com os costados.
Sentado no chão, completamente dorido e vendo os vizinhos a rir, Joaquim tenta, a custo, levantar-se. Embora ferido, e emocionalmente destroçado, consegue erguer-se e, olhando para o cimo da escada, onde Maria, com as mãos na cintura, o contempla com ar desafiante, diz em voz bem alta, miraculosamente sem gaguejar: "Isto não acaba aqui. Amanhã levas mais, ouviste?". E parte, sozinho, a cambalear, para se embrenhar mais à frente na noite escura.
Amanhece. Na velha ribeira algo de novo parece passar-se. Ouvem-se, aqui e ali, murmúrios e risadas, saídos dos pequenos aglomerados de pescadores e varinas. Há festa, sem dela haver sinais evidentes. A azáfama do vaivém das chatas, levando e trazendo os pescadores, faz parte do cenário de um dia normal naquele porto de pesca. Apenas as sonoras gargalhadas soltas pelas potentes vozes das varinas intrigam os transeuntes que por ali passam.
Joaquim cumpre as ordens. Às 9 horas da manhã chega à ribeira e, em vez do habitual bom dia, é cumprimentado pelos camaradas com a inesperada frase: "À c'anzana, Esquim, à c'anzana... e tu, nada!", frase esta que é repetida até ao limite da sua paciência. Triste, Joaquim baixa a cabeça (enquanto mentes maldosas pensam, embora não o digam que, literalmente, baixa os cornos) e continua a andar, ferido por dentro, até alcançar uma pequena lancha, onde se senta, na mais profunda solidão.
Lança o olhar para a multidão que, atentamente, o observa e vê colegas, amigos e pessoas anónimas, com ar de diversão. É ele o motivo da chacota de toda aquela gente e, no seu canto, não pára de ouvir a frase que o tortura "À c'anzana, Maria, à c'anzana... e eu nada!".
De repente, como que numa visão, Maria surge de entre o amontoado de gente, sorridente e com ar vitorioso, elevada à categoria de heroína por um acto de adultério. Joaquim não consegue conter a ira que dele se apodera perante tal contra-senso. Furioso, ergue-se e pega num pequeno remo existente na lancha onde se tinha sentado. É com o corpo todo a tremer que se dirige à mulher, de forma agressiva, empunhando bem alto o remo e gritando, num tom suficientemente audível para chamar sobre si a atenção da turba agitada, que recua em conjunto.
Maria fica isolada num frente a frente com o seu homem. Faz-se silêncio na ribeira. A expectativa aumenta. Maria, imóvel, apenas olha para ele. O espaço entre ambos diminui.
A tensão cresce no recinto, quando Joaquim solta uma frase, erguendo mais alto o remo "Ah, puta de merda! Agora é que vais ver!"
Instala-se um silêncio de morte na ribeira. Até as gaivotas, que por ali esvoaçam, deixam de grasnar, como que em cumplicidade. O mar bate no molhe sem se fazer ouvir, e as pessoas acotovelam-se, inertes, suspensas do desenrolar da cena entre o casal.
O remo começa a descer ao encontro do corpo de Maria. Paira no ar um augúrio de tragédia. Subitamente, o remo é travado na sua descida. Um par de mãos se junta às de Joaquim. São as mãos de uma varina, são as mãos de Maria que, conseguindo interceptar a trajectória do remo em direcção ao seu corpo, com um forte puxão o arranca das mãos trémulas de Joaquim.
Vira-se o feitiço contra o feiticeiro. Agora, é Maria quem segura o remo e, com ele, desata a bater desalmadamente no marido, num sobe e desce estonteante sobre o corpo de um Joaquim cada vez mais magoado, ferido, humilhado.
O povo, a tudo assistindo entre o impávido e o incrédulo, não reage, pois entre marido e mulher ninguém deve meter a colher, assim diz o ditado, que aqui impera como lei.
Joaquim quebra perante a violência da mulher. Cada pancada daquele remo é mais uma tonelada, de peso e de dor, sobre o seu corpo cada vez mais frágil. Acaba por cair, no chão da calçada. Ali jaz, perdendo os sentidos.
Maria lança-lhe um olhar de desprezo, cospe para o lado e atira o remo para longe. Tarefa cumprida, vira-lhe as costas e afasta-se, sem uma palavra.
A ausência de qualquer som parece intensificar-se nos momentos que se seguem. Todos os olhos se fixam no corpo inanimado. Uma voz, vinda do nada, quebra o silêncio a medo "o Esquim tá morto!".
Mas não. Sobrepondo-se a toda a dor, a muito custo, Joaquim consegue abrir os olhos e observa a multidão que, insensível e imperturbada, assiste à sua tragédia. Apenas uma suave brisa corta o silêncio. Estranha manhã aquela!
Sentindo o amargo sabor do orgulho ferido, num apelo ao que resta das suas forças, Joaquim senta-se no chão frio, ergue a cabeça e procura Maria com o olhar, que se detém ao encontrá-la. O suspense aumenta entre a assistência. Nunca aquela ruidosa ribeira conhecera tal quietude.
Joaquim levanta um braço, dorido e oscilante, em direcção à mulher. Aponta-lhe um dedo e, quebrando todo o mutismo, solta bem alto as palavras:
"Maria, não te esqueças... e lá em casa levas mais!"
FIM